terça-feira, 26 de março de 2013

"Carta do ausente", de Vinicius de Moraes


"Meus amigos, se durante meu recesso virem por acaso passar a minha amada, peçam silêncio geral. Depois apontem para o infinito. 

Ela deve ir como uma sonâmbula, envolta numa aura de tristeza, pois seus olhos só verão a minha ausência. Ela deve estar cega de tudo o que seja o meu amor (esse indizível amor que vive trancado em mim num cárcere mirando empós seu rastro). Se for à tarde, comprem e desfolhem rosas à sua melancólica passagem, e se puderem, entoem cantus-primus. Que cesse totalmente o tráfego e silencie as buzinas de modo que se ouça longamente o ruído de seus passos. 

Ah, meus amigos, ponham as mãos em prece e roguem, não importa a que ser ou divindade por que bem haja a minha grande amada durante o meu recesso, pois sua vida é minha vida, sua morte a minha morte. Sendo possível soltem pombas brancas em quantidade suficiente para que se faça em torno a suave penumbra que lhe apraz. Se houver por perto um hi-fi, coloquem o "Noturno em Bb" de Chopin. 

E se porventura ela se puser a chorar, oh recolham-lhe as lágrimas em pequenos frascos de opalina a me serem mandados regularmente pela mala diplomática. Meus amigos, meus irmãos (e todos os que amam a minha poesia), se por acaso virem passar a minha amada, salmodiem versos meus. Ela estará sobre uma nuvem, envolta numa aura de tristeza o coração em luz transverberado. 


Ela é aquela que eu não pensava mais possível, nascida do meu desespero de não encontrá-la. Ela é aquela por quem caminham as minhas pernas e para quem foram feitos os meus braços, ela é aquela que eu amo no meu tempo e que amarei na minha eternidade - a amada una e impretérita. Por isso procedam com discrição mas eficiência: que ela não sinta o seu caminho, e que este, ademais ofereça a maior segurança. 

(...)

Que ela pense, agora e sempre em mim, que longe dela ando vagando pelos jardins noturnos da paixão e da melancolia. Que ela se defenda, a minha amiga, contra tudo que anda, voa, corre e nada; e que se lembre que devemos nos encontrar, e para tanto é preciso que estejamos íntegros, e acontece que os perigos são máximos, e o amor de repente de tão grande tornou tudo frágil, extremamente, extremamente frágil."

quarta-feira, 20 de março de 2013

Sputnik

O estudante estrangeiro
mata tempo com temas em economia e direito
antes de praticar efetivamente seu ofício
 de transeunte deslumbrado em um parque coberto de neve.

Vai ver o Sputnik em um museu
tomar cidra, e jogar xadrez com um europeu.

Ah, vidinha.

quarta-feira, 6 de março de 2013

02.2013 ~ 03.2013: aqui

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aqui,

com ar afoito, fevereiro
resguarda o maior quinhão
de meu inquieto coração.

ele revive por inteiro
dia de sol praieiro
à Lagoa da Conceição.

aqui,

no prenúncio do fim do verão
recolho imagens de até então
e faço do teu álbum meu fiel companheiro

certo de que nada será passageiro
guardo-o salvo em meu gaveteiro
fazendo de tuas fotos minha definitiva inspiração.

aqui,

da minha pele a branquidão
reclama seu tom verdadeiro
de irritado vermelho arruaceiro.

anseio de novo corte certeiro,
feliz ofício da tua desocupada mão
a rasgar-me com satisfação.

aqui,

ensaio em segredo canções em alemão
e frases feitas de poetas do Rio de Janeiro
para ilustrar cada dia nosso em chão brasileiro

e antes que eu parta ao estrangeiro
faça-me mais desse pão de queijo mineiro
e evite que me consuma a inanição

aqui,

ainda contigo sobre o mesmo colchão
já me debato cheio dessa recente aflição:
sem ti (ou fiel cópia tua) não serei inteiro.

se puderes fazer-me o favor, pois não,
peça o quanto antes ao carteiro
para mandar-me tua igual reprodução

aqui,

onde o tempo é ligeiro
ao finzinho de fevereiro
resisto à tenaz premonição

dita por inquieto trapaceiro.
do relógio o fugaz ponteiro
não há mais ninguém que resista são

aqui

sob protesto de interno berreiro,
vou-me somente sob uma condição
já que em meu peito já há um vão:

jamais olvide-se em meio à multidão
que tornaremos à nossa pendente paixão,
avivar ansiosos nosso amor derradeiro.