terça-feira, 16 de julho de 2013

Vidas inventadas

ou: Os fantasmas de Darwin e o paradoxo da escolha


“Mate!” — exclama o Darwin, meu vizinho neozelandês desses últimos meses, deixando-se cair na cama onde estava sentado.

Estamos próximos das despedidas que nos separarão por anos, tomando cerveja berlinense no pequeno apartamento dele e jogando conversa fora com o húngaro que mora na porta ao lado. Um dia Darwin me disse que tinha um segredo terrível, o qual nos contaria oportunamente quando estivéssemos na residência; depois de muita insistência, ele concordou que essa seria a ocasião. Insistindo mais um pouco, ouço-o me retrucar outro “mate!” hesitante e procurar no teto branco do quarto por onde começar.

Chegar ao ponto de convencê-lo a me contar alguma coisa, no entanto, levou algum tempo. Ironicamente, apesar de Darwin ter me despertado uma curiosidade incansável acerca da sua vida, ele é um cara extremamente desinteressante. Se tivesse que resumi-lo, talvez dissesse que é um tanto preguiçoso e cheio de opiniões bem ordinárias, e seu notável hábito de nunca ir à aula nenhuma incomodava meu senso de obrigação cotidiano. E aí, por trás do sorriso que ele me dava quando eu aparecia vez ou outra para visitá-lo na porta ao lado, sempre achei que algo ali havia de ser contado em histórias meio alcoolizadas que eu não esqueceria.

A primeira vez que entrei no pequeno apartamento habitado por ele, aliás, rendeu-me quase um choque: tudo o que ele possuía e trouxera para cá estava misturado e jogado pelos cantos, sobre o chão do quarto que era impressionantemente imundo. Embora seja um cara bastante sozinho, era como se lá convivesse mais um pequeno caos de pessoas alheias ao asseio e organização. Só mais tarde fui entender que era exatamente esse o motivo da bagunça e da aura de mistério que ele dava ao seu grande segredo: Darwin realmente morava com mais pessoas. Isto é, todos os fantasmas de suas outras vidas inventadas.

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