Embora me considere um cara
bastante introspectivo e entusiasta de uma boa dose de contemplação das
paredes, uma das minhas maiores fontes de entretenimento certamente é encontrar
pessoas com uma boa história. Tenho dois colegas bastante próximos que têm sido
fontes constantes desse tipo de momento, e frequentemente me vejo diante de
compilações verdadeiramente inusitadas de largas e detalhadas descrições de
relevantes perspectivas no interior do Rio Grande do Sul e no litoral
catarinense.
Por exemplo: um deles passou a
ser recentemente o cara que já esteve em um cargo de gerência de uma sucursal na
Índia aos 19 anos, comandando, entre outros, um sujeito que achava ideal manter
o crachá de identificação pendurada no cinto, bem entre as duas pernas. Outra
história memorável, pela qual me deixo convencer sempre, é aquela sobre como
quase foi futebolista semiprofissional em alguma cidadezinha australiana. As
pessoas são realmente surpreendentes de vez em quando.
O outro passou muito perto de
padecer de febre em distantes aeroportos, chegando próximo de desfalecer em uma
coleção de cidades e hostels mediterrâneos. Por sinal, parece-me que encontrou
amor de verdade — ou assim gosto de entender o que me conta — e agora vive de felizes
esperanças e eventuais tristes constatações. Nunca deixa de ser uma excelente
conversa, precisamente por isso.
Aliás, no ensejo de alguma dessas
narrativas, deixei-me levar por devaneios em uma boa meia hora de expediente
outro dia, quando me foi explicado longamente como eram os detalhes nas paredes
de mármore do Taj-Mahal. “É o tipo de coisa que não dá pra entender até que estejas
lá”, diz ele. “Fiquei de cara. Mesmo.” As gravuras da fachada e a estrutura da
construção – naquilo que a internet chama de uma das obras primas do estilo
arquitetônico correspondente, como fui ler depois – são praticamente
incontáveis, e todo o conjunto desenha a epítome da metáfora à qual voltamos
sempre: viajar é partir para surpreender-se. Todas as culturas em algum
momento estarão à espera com algum
memorial monumental, atentas ao seu queixo caído.
Nisso ele continuou: há certas
rodovias e estradas indianas à beira das quais crianças cadavericamente
subnutridas deitam no meio-fio, entre lixo e sujeira. Nada particularmente
idiossincrático, mas foi o suficiente para causar uma impressão e tanto em mim.
E um pouco longe disso — mas em uma realidade não tão distante — os seus
colegas de trabalho indianos gostavam de comer uma refeição apimentada só com a
mão direita. Suas vidas são temperadas como suas refeições, e um ocidental
desavisado não percebe isso até que queima a língua com o molho ardido. Enfim,
suponho que não seja possível de manter uma convicção de pé quando alguém te
olhar rindo e pronunciar com sotaque exótico que, veja só, o importante talvez
não seja nada disso que você está querendo. Ele não precisa saber onde fica
Santa Catarina, mas o indiano preza em sua casta uma realidade paralela a nossa
— e é feliz à beça.
“Como assim? É um lance tipo o karma?”, pergunto, já conhecendo em
parte o assunto, mas indagando do mesmo jeito. “É, por aí”, diz ele. “Castas e
tal.” Ninguém lá é exatamente um poço de conformismo, mas não é difícil de
imaginar que as pessoas tenham um espectro de perspectiva completamente
diferente: quem morre sabendo que vai ter uma bela pós-vida, morre feliz. “E aí
não faz mal que o cara morra na merda”, concluiu ele, pensativo.
--
Esses meus dois colegas viajam
logo, e amanhã não estarei aí. Despedi-me deles tão logo terminaram as
narrativas sobre países longínquos e fusos horários opostos. A um deles, como
de praxe, pedi um cartão-postal; ao outro, não disse nada, mas não foi
necessário. “Não curto muito escrever”, ele acrescentou espontaneamente e riu.
Ah, é realmente uma pena: no meu
pretenso costume de escrever vez ou outra as abstrações sem sentido,
referências pouco claras, amores e desamores que acontecem por aqui, imagino
que, se meu colega nunca parar para registrar, um dia as suas histórias serão
esquecidas sem dó. Bom, por certo ele também não estava sentindo muita piedade
das histórias. Até o questionei se não lamentava ter deixado de lado a
oportunidade de ser o brasileiro futebolista ganhando uma grana na Austrália ou
de viver um sonho bollywoodiano, mas
não. “Foi uma fase, e daqui a pouco vou estar em Hamburgo trabalhando num
emprego ‘da hora’, vais ver só”.
Minha fobia do esquecimento me
engasgou.
--
O turbilhão de memórias continua,
mas a história passa a ser minha — estive em um casamento há pouco tempo.
Melhor dizendo, o casamento do meu irmão, e um dos dias mais felizes que já
pude viver. Havia no ar um clima bastante incrível de êxtase e genuína
felicidade, impressionantemente não limitado ao casal. Talvez o padre tenha
acertado ao dizer que estávamos celebrando o amor.
O lugar era bastante bonito, é
importante não esquecer. A igreja de Gaspar é grande, alta, com pilastras
majestosas, uma bela fachada, com cores vivas e gritantes, uma escadaria alta,
e o altar simples, mas emocionante. Lá eu chorava, como bom padrinho. As
pessoas iam entrando, e eu lá soluçando no altar que ocupava só como feliz
testemunha. Limpo o suor da testa, ajeito a gravata prata e poderia continuar,
mas em termos de esquecimento, há outro foco — lá pelas tantas, minha avó sobe
ao altar.
Vamos lá: tenho uma avó que tem
uma séria doença degenerativa no cérebro, e isso a faz esquecer-se de tudo e todos
depois de certo tempo, permitindo-lhe uma cara amistosa, dócil, confusa e um
constante ar de admiração. Estamos sempre a nos perguntar se ela realmente
compreende o que se passa. Talvez finja entusiasmo para que paremos de dar atenção
ao fato de que ela de fato não pode estar totalmente ciente daquilo que a cerca.
No conjunto da pessoa — com seu
tailleur cor-de-rosa, cabelos crespos e simpáticos óculos redondos —, vi uma
adorável mulher no limiar do esquecimento.
Alguém que assentia alegre e cordata a cada afirmação entusiasmada do
padre eloquente, mas que me dava ao mesmo tempo inexplicavelmente uma impressão
triste. Eu provavelmente estava fortemente influenciado por saber qual é sua
real condição médica, mas não pude conter um soluço menos contido quando a vi
subindo os degraus que levavam até os noivos.
Por alguns segundos no altar,
lugar e hora bastante improváveis para tal, vi-me diante de uma série de
recordações de quando meus primos, meus irmãos e eu éramos criança e corríamos
pelo quintal dela. Nesse tempo, ela costumava fazer pão de queijo para nós, cujo
sabor e textura sempre permanecerão irreproduzíveis. Talvez já tivesse tido a
sorte de provar algum pão de queijo com cheiro não muito diferente, mas o gosto
nunca será tão bem misturado com a memória do cheiro dos limões e do galinheiro
abandonado no quintal. Pensando bem, não sei se meu paladar saberia
distingui-lo se o estivesse provando novamente.
O pão de queijo, é claro, é
apenas um exemplo. Ninguém choraria porque sente tanta falta de uma ou outra
iguaria específica. Mas lamentei que minha avó — e sua alma, arrisco-me a
dizer — estavam apenas em parte presentes. O resto
fora já outrora soprado pra longe.
Meu ponto: acho que imaginar uma
vida inventada para ela não vai ser o suficiente depois que cair no infinito
abismo do cérebro plenamente degenerado. Lamentarei infindavelmente, mas enquanto
não houver alguém que se disponha a biografar a sua vida por completo e faça
com que choremos de nostalgia (e não só saudade), vou viver atormentado por ter
conhecido só uma lembrança viva e já borrada. Sua voz trêmula vai desaparecer,
por nunca tê-la gravado, e seu quieto mundinho interno conhecerá a extinção,
por não o ter transcrito. Conheço-a, pelo jeito, muito menos que deveria, mas
agora teremos cada vez menos de si para contar ao mundo.
--
Viver, arrisco dizer, é estar imerso em um fluxo
de memórias, servindo a nossas vidas como narrativas paralelas. Aqui, onde
somente a introversão vê prazer, os fantasmas surgidos do assombro da
transitoriedade são terríveis e assustadores vultos. As narrativas paralelas de
outrora são lembretes sérios e impassíveis de que possivelmente as partidas
futuras serão a tônica constante de tudo o mais que sobrevier. Se o desapego,
como os vultos espreitando nos cantos no aguardo de um passo desatento, ousar
estar certo, dar-me-ei por vencido pelas futuras tentativas de fincar raízes
nas pretensas veredas oferecidas pela minha fácil e vã vida. A leveza com que o
tempo passa é, como bem dito entre Joinville e Blumenau, tanto nossa tragédia
quanto nossa esperança.
nunca me esqueço:
http://mundoderascunhos.blogspot.com.br/2012/10/retoricas-sobre-esquecimentos.html
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