1. Darwin
“Let me tell you
this story about how...” é como Darwin, meu vizinho neozelandês,
costuma começar a me contar alguma coisa.
Tomo o trem com ele nas manhãs de segunda-feira, e ele normalmente mata
o tempo jogando conversa fora. Isto é, quando encontramos assentos livres no
S-Bahn.
Não
sei bem a razão disto, mas me agrada muito esse seu jeito de introduzir uma
nova história. Mesmo porque Darwin não é exatamente um cara carismático ou
extremamente interessante no alto de seu 1m63 de altura, e ainda assim acaba
prendendo a minha atenção sempre que usa essa frase. “Let me tell you this story”, inclinado para frente, olhos para cima
e dedo indicador pontuando a linha de pensamento.
Dessa
vez é sobre o Freddie, que também atende por "Alfred", “Alfie”, “Alf”, ‘‘Freddie’ ou “Freddo”.
Freddie é um de seus amigos australianos mais constantes nas histórias na nossa
comutação diária, provavelmente em função de ser a única pessoa conhecida por
Darwin que já tinha feito um intercâmbio. E Fred, por um acaso, morava em
Berlin.
Ah,
o ponto não é esse. Acontece que conversávamos sobre a pequena crowd que se acumulou no trem, entre a
qual vejo um sujeito de Florianópolis que também mora na nossa residência. Esse
cara não tem nada de especial e poderia ser mais um entre os 400.000
florianopolitanos habitando atualmente a ilha, mas lembro dele porque o vi
cruzar por mim quando estava indo à estação central de Berlin nas últimas vezes
que fui viajar. Nada para chamar a atenção de ninguém, mas o jovem lá apareceu
duas vezes na mesma parada de trem em que eu estava, falando muito alto em
português com algum gaúcho — às 6h30.
“E
daí?”, me pergunta o Darwin.
“E
daí que esse é o padrão de Berlin, não? A gente mora aqui há uns dois meses e
consegue ainda contar em uma mão o número de vezes que chegamos em casa depois
do sol nascer.”
Minha
preocupação em competir com a alvorada nos vários pós-festa dessa cidade incansável
lhe estranha.
“Não
entendo.”
“Sei
lá,” digo tentando ganhar tempo para formular melhor o que quero dizer. “Tudo
bem que temos gastado bastante tempo na estrada ultimamente, mas talvez
convenha sair mais para explorar a cidade. De repente conhecer mais pessoas...
além de todos os cento e vinte intercambistas.”
Ele
me olha e abre um sorriso meio difícil de traduzir. Acho que em inglês eles
diriam “smirk” ou alguma coisa assim. Só sei que Darwin entendeu meu ponto, e
‘let me tell—
“Let me
tell you this story about Freddie,” — logo imaginei — “and his roommate.”
Ainda
em Lichtenberg, o trem tem ainda pelo menos 40 minutos pela frente. Fico feliz
de ter Darwin para matar o tempo, ainda que sua voz seja um pouco alta demais e
atraia sempre atenção de alguns Asis
carecas esperando a deixa de uma briga.
Ele
está falando sobre Freddie e seu colega de apartamento, certo. Freddie (que, por sinal, era australiano) morou em 2012 com um berlinense perto de Prenzlauer Berg, um bairro
cheio de bares e clubs, bem famoso
por ser ativo para gente da nossa idade. E esse cara dividindo um
apartamento com o australiano era “drug dealer” até 2011 ou por aí, o que lhe rendia um acesso a drogas muito mais fácil que para qualquer um. Por isso, a
referência que Darwin tinha sobre o que havia de interessante na capital alemã
inevitavelmente cercava o tema na ótica de alguém que estava frequentemente high.
“E
aí que eu perguntei a ele o que eu poderia fazer por aqui, porque estava
começando a ficar sem ideias. E sei do que você está falando: acho mesmo que a
gente poderia estar usando melhor nosso tempo.” Ele pausa brevemente, sorri de
novo (‘smirk’ seria a palavra aqui mais uma vez) e faz um gesto sarcástico com
as mãos: “Berlin — the place to be!”
“A-ha”,
digo. “E qual foi a sugestão?”
“Bom,
não sou bem disso, você sabe. Não fumo e tal.” E sei mesmo, Darwin é do tipo de
cara que fica ‘bêbado’ com um par de shots
de tequila e uma Beck’s. (Eu saberia, porque contei as bebidas na última
ida ao bar perto da Ostkreuz.) E, de fato, não conseguia imaginar muito bem
como ele se disporia a tentar algo mais pesado, como viajar no ácido.
Mas
a história do Freddie continuava, porque as sugestões eram até bastante interessantes. Disse-me Darwin que, em dado ponto do ano do seu amigo em Berlin, ele havia
desenvolvido o hábito de ir fumar alguma coisa forte, ir às estações de trem e
improvisar músicas sobre os transeuntes. Talvez os acordes fossem sempre os
mesmos, mas as pessoas, como transitórios personagens das músicas espontâneas
de Freddie, formavam em sua cabeça versos tão permanentes quanto a durava a
presença dessas pessoas no seu campo de visão. Não o culpo: decerto é mesmo
difícil de memorizar qualquer composição enquanto totalmente chapado.
A
ideia me divertiu, de qualquer forma. Pensei nessa excelência criativa que
passara despercebida, que talvez fosse de amplo reconhecimento se chegasse ao
crivo de alguma multidão já preparada. Ou se ele ao menos se lembrasse das
rimas e sacadas mais inusitadas.
Além
disso, assim que Darwin terminou essa parte do que dizia, senti um torpor
causado pela ideia que veio depois. Freddie provavelmente não se deu conta disto,
mas cada transeunte aleatório (que no momento apenas ilustraram suas horas sob o
efeito da maconha, zumbindo como centelha de inspiração junkie) estava, na verdade, vivendo uma vida complexa e pulsante
como a dele — igualmente populada com ambições, amigos, rotinas, preocupações e
alguma loucura herdada. Praticamente histórias épicas que continuaram
invisivelmente ao seu redor, como um formigueiro alastrando-se profundamente na
terra com passagens elaboradas para milhares de outras vidas que Freddie sequer
teria tempo de conhecer antes de fazer seu centésimo aniversário. E, afinal de
contas, Freddie, ali com seu violão, apareceria apenas na vida daquelas pessoas
essa única vez, mesmo que se fizesse presente de forma tão inusitada, quase
como um repentista europeu.
Olhando
ao meu redor, com todos os passageiros daquele trem olhando algum livro ou a
paisagem pela janela, senti o mesmo pensamento ressonar no nosso momento entre
uma parte e outra da história contada por Darwin. Reduzidos à nossa inércia,
éramos também nada mais que frame de
um segundo no campo de visão das outras pessoas. Um pequeno gole de café no
segundo plano, um borrão de tráfego passando rápido pela rodovia, uma janela
acesa na alvorada, algum cenário sonolento ao final do dia. Ou algum cara de
Floripa voltando para casa de manhã.
“Anyway”,
retomou Darwin, “there was also Freddo’s ‘girlfriend’ during his exchange, Lisa
from Austria.” Ah,
sim. A Lisa. “Ela curtia bastante tomar MDMA, então eles faziam isso
praticamente todo final de semana.”
Eu
o fitava, absorto na história.
“E
soube que ela tinha um amigo que estava morando na Finlândia,” — por Deus, mais
um personagem! — “que acabava se perdendo nas drogas alucinógenas e fazia
algumas coisas sem noção.” (Ele deve ter dito “some crazy shit”. Essa era outra expressão que Darwin gostava de
usar).
“Tipo?”
“Tipo
quando ele foi a um club em Berlin
sem espelhos, janelas ou mais do que meia iluminação. Tinha a ver com música
eletrônica, mas só lembro da história pela metade. Aí parece que ele se perdeu
no lugar porque o efeito do cogumelo que ele tinha tomado estava muito forte, e
foi parar numa sala totalmente escura onde as pessoas transavam e tal. Diz ele
que foi o sexo mais mecânico da sua vida.”
“Berlin
tem de tudo, afinal.”
“Pois
é.”
E
aí rimos, imaginando o que provavelmente deveria ser o ‘sexo mais mecânico da
minha vida’ na concepção de alguém alucinando com cogumelos. O trem atingiu
Alexanderplatz, e, como de habitual nesse ponto, dezenas de pessoas
desembarcaram, dando lugar a mais dezenas de outras que embarcaram. Entre elas,
Lena.
--
2. Lena
Lena
tomou o lugar ao lado de Darwin. Ela usava um lenço vermelho no pescoço e ouvia
música com fones de ouvidos. Loira, não muito alta, bem branca, olhos azuis, e
definitivamente alemã. Talvez não de Berlin, no entanto. Tinha também olheiras
e aparentava estar cansada.
E estava mesmo, pelo que tinha se passado com ela: na madrugada do domingo que
antecedera aquela segunda-feira, Lena praticamente não tinha dormido direito
por ter ido a Potsdam — cidade nos arredores de Berlin que se pode atingir simplesmente
com a S7, uma das linhas principais do trem de superfície — para uma festa com o
Americano Finlandês de Berlin. Esse mesmo cara eu havia conhecido aqui mesmo em
2011 no Tacheles, em alguma festa
meio asozial próxima ao centro da
cidade. Mas, como Freddie experimentara tocando violão no metrô, essa era
apenas uma das coincidências oferecidas pelo cruzamento de veredas secretas a
interligar a vida das pessoas. (A imagem dos túneis em um formigueiro
permaneceria em minha mente bem vívida.)
Aparentemente,
embora eu jamais fosse tomar conhecimento disto, nos dois anos que
transcorreram desde meu rendez-vous com
o Americano — nunca fiquei sabendo nem seu nome, tampouco tive oportunidade de
perguntar a Lena —, seu espírito de Dean
Moriarty abandonou a Finlândia e achou refúgio aqui perto da capital alemã.
Faz todo o sentido, pensando bem. Consigo imaginar bem as histórias de On the Road recontadas por ele em algum
prédio mais decadente, construído ainda durante a Guerra Fria.
Eu
divago. Falávamos de Lena, que fora à Potsdam por convite do Americano. Desde
que se mudara para a Alemanha, ele adquirira o hábito de organizar nessa parte
do ano festas com praticamente todas as pessoas que conhecia na casa de seu
melhor amigo alemão, Marcus. (Marcus também atende por ‘Garfield’ — longa
história, não pergunte —, então passemos a tratá-lo por seu apelido). Na
ocasião dessa última festa, além de Lena também compareceram Mareike e Simon,
que o Americano havia conhecido quando ainda morava em alguma cidade perto de
Helsinki.
Pelo
que já teria suficiente para criar olheiras em Lena, a houseparty transcorreu atendendo às expectativas. As pessoas
lotaram a casa do Garfield, havia álcool à beça, e música boa alternava-se como
música ruim. Um pessoal da América Latina divertia-se empolgado colocando reggaetón a repetir. E então, às três da
manhã, enquanto mais várias pessoas tomavam caipirinhas (ou ‘Keipis’, como eles
diriam) na cozinha de Garfield, algo repentinamente causou um estrondo no
corredor ao lado.
Lena,
que se encontrava próxima da porta, pode ter uma boa visão do que se passava:
Simon, um dos alemães que o Americano trouxera da Finlândia, estranhamente
estava a vestir suas calças com uma cara muitíssimo aborrecida e meio desenganada. O estrondo se repetiu: Mareike agora fora jogada ao
chão, junto com o resto de suas roupa, que ela imediatamente se pôs a vestir, extremamente
aflita.
Antes
que se pudesse formular alguma hipótese sobre o ponto inicial, mais coisas
foram arremessadas na direção dos dois, dentre as quais poderia destacar um
ferro de passar roupa. E então, logicamente, Garfield irrompeu enfurecido pela
porta do seu quarto com um fantástico repertório de ofensas em alemão. Eu teria
tomado nota de todas as variações de “Arsch”,
“Scheiße” e “ficken” que ele gritava irado.
“Ach so”, pensou consigo Lena. “Os dois
estavam usando o cama do Garfield.”
Mas
fica pior: Garfield já conhecia Mareike, ao ponto de eles próprios terem se
encontrado na mesma situação em ocasiões e houseparties
anteriores. E aí, veja, ela teve a ousadia de usar a cama dele com outro
cara. Durante a festa. Logo o Garfield, que tinha uma profissão tão
estressante, tendo que estar já indo viajar na manhã seguinte para uma jornada
de 12 horas. Logo o Garfield, cuja ex-namorada havia há pouco tempo terminado
de infernizar-lhe a vida com todo o tipo de bizarrice, envolvendo em certo
ponto até uma gravidez falsa e ameaças de suicídio. (Lena surpreendia-se como
esse tipo de coisa realmente acontece.) Não suficente, Mareike quebrara de alguma
forma o retrato que Garfield havia deixado no seu quarto, no qual aparece (ou
aparecia) abraçado com a tal ex-namorada.
O
resultado disso tudo foi, é claro, que a houseparty
teve que parar ali mesmo, porque Garfield estava colérico, tentando chegar
em Simon a todo o custo para fazer sabe-se lá o que com ele. Tudo o que se
podia ouvir era o alvoroço do Americano e um segundo amigo tentando contê-lo,
de modo que ele não chegasse efetivamente a agredir o Simon, já que isso
renderia uma visita ao distrito policial e naturalmente poria em cheque sua
carreira. A-há.
Tão
logo Mareike e Simon deixaram o lugar, o Americano passou a correr de um lado
para o outro tentando consertar o que podia. A maior parte dos seus amigos
viera sabendo que dormiria na sala de Garfield assim que a festa acabasse, mas essa
possibilidade não havia mais como.
Nesse
ínterim, enquanto todos os outros se agitavam preocupadas, Lena ficara parada,
incrédula com o nível da situação explodindo ao seu redor. À maneira do cenário
que se fizera, ela era agora a janela acesa no segundo plano do crepúsculo.
Como uma pedestre de passagem que não está ligada de modo algum com o contexto.
E nisso ela se deu conta que não tinha mais aonde ir por um bom tempo, porque o
próximo S7 de volta para casa só viria em algumas horas.
De
volta ao nosso trem matinal, obviamente não pude deduzir metade dessas
informações apenas ao olhá-la sentada diante do Darwin. Só pude imaginar pelo
seu aspecto que o final de semana havia lhe cansado muito. Paramos em Hackescher Markt, logo depois de
Alexanderplatz, e mais pessoas ocuparam o trem.
--
3. Herr Reuß e
Gabriel H.
Uma
boa parte do vagão é disposta de modo que as pessoas se agrupem sentadas em
quatro assentos em duas fileiras, voltadas umas para as outras. No espaço que
se esvaziara se sentou um senhor alemão, Herr Reuß. Nessa configuração final,
encontravam-se ali Darwin, Lena, Herr Reuß e eu. Fitamo-nos, ao que nosso novo
companheiro de viagem nos encarou do alto dos seus óculos retangulares sem aro.
Também nada disse, voltando seu olhar severo à janela.
É
difícil mensurar o peso de um olhar para retinas tão vividas e cansadas. Para
Herr Reuß, a pequena fobia de transitoriedade que se manifestava na falta de
valor que temos nas milhares de vidas a cruzar nosso caminho todos os dias —
como agora — não vinha à tona com a presença de Darwin, por exemplo. Ele já
vira australianos o suficiente em sua vida. Ele já vira muita coisa o
suficiente, dado sua história de baby-boomer,
Ossie — isto é, nascido no lado oriental da Alemanha no pós-guerra — e desacreditado
aposentado.
Tome
Friedrichstraße, por exemplo. Era a
estação que vinha logo depois do lugar onde ele embarcara. Na sua época era
conhecida como “Palácio das Lágrimas”, por ter sido cena de desgostosas
despedidas quando as pessoas do oeste não podiam ir ao outro lado, ainda que o
contrário fosse permitido em rápidas visitas. A visão dos tijolos marrons do
lado de fora o remetia sempre aos anos oitenta, quando Herr Reuß vestia seu
sobretudo de couro, sem cabelos na sua cabeça pálida, e passeava de coturnos
com seu pastor-alemão, Ralfie.
Na
mesma lógica do Alfie — “Freddie”, “Freddo”, “Alf” —, que sentava na estação de
trem para entreter o ouvido de quem estava a passar por
ali com versos sobre a casualidade, Herr Reuß e Ralfie se entretinham sendo um borrão dos pedestres próximos
da Friedrichstraße. Mas o faziam com
uma sádica intenção, tornando-se menos janela ao fundo do crepúsculo e mais um
susto pela rápida visão um Doppelgänger, algum
animal selvagem ou de um hooligan agressivo
que espera pela menor deixa para dar utilidade a um soco-inglês. Isso porque
Reuß efetivamente dava com frequência uso ao seu soco-inglês, o que não
precisava ser explicado com todas as palavras a quem lá se encontrasse.
Naturalmente,
não há que se sintetizar a vida de Herr Reuß na sua fase mais underground. Suas várias facetas sempre
foram tantas quanto os muitos guindastes e gruas de construção espalhadas por
Berlin. Ele já era grande expert do ar
da madrugada, sob estrelas ofuscadas por holofotes e escondidas pelos
guindastes, impregnado pelo cheiro de bebida deixa o ar da cidade cheirando à
festa. De um jeito ou de outro, sua feição taciturna não dá deixas a icebreakers.
Depois
de algum tempo atingimos a Hauptbahnhof,
e Lena desembarca. Gabriel entra e toma seu lugar, cumprimentando-nos
alegremente. Finalmente teremos alguma outra pessoa com quem conversar. Darwin tenta
dizê-lo, em embolado sotaque neozelandês, que gostaria de saber as horas. Ele
responde com alguma piadinha próxima a “cinco para daqui a pouco”, mas o alemão
de Darwin não chega a esse ponto. Gabriel continua rindo e diz que são 9h43.
“De
onde você é?”, pergunta ele, alegre.
Darwin
apresenta a si e a mim, e começamos a trocar uma ideia com ele. Herr Preuß se
ajeita meio desconfortável, ainda sem tirar o olhar da janela. Depois do
papinho sobre de onde vínhamos, o que estávamos fazendo em Berlin, quantos anos
tínhamos e uma descrição mais longa sobre a cidade do Darwin, repetimos a
pergunta.
“Ah,”
diz ele como quem busca no ar por onde começar. “Moro em
Mecklenburg-Vorpommern, na verdade. É um estado no norte, conhecem?” Conheço, e
fico feliz de ter tido aquele mapa enorme pendurado na parede durante as aulas
de alemão nos anos anteriores.
“Isso!
Pois então. E sou da Bavária, na verdade. Mas vim visitar a minha vó, já que
não tem mais ninguéme aqui por ela, e ver se consigo aproveitar para assistir a
final da Bundesliga no Olympiastadion.”
“Torcedor
do Bayern?”
“Há,
lógico!”
Darwin
é bom nisso, mas também já conheço bem essa, considerando o país de onde venho.
‘Jogando conversa fora para iniciantes,
lição 1: Futebol”. Algum deles comenta alguma coisa sobre a escalação, outro
acrescenta uma crítica a um jogador, culpando o técnico, e isso dura alguns
momentos. Aceno com a cabeça, de olho no Herr Reuß, que se agrada com as críticas
ao Bayern. Ao menos isso lhe atrai levemente a atenção.
A
introdução da conversa morre por ali. Não lembro bem o porquê disto, mas
encontro um gancho que não faz sentido no que Gabriel diz e questiono porque
ele está aqui na cidade.
“Bom,
tem mesmo a minha vó e a Bundesliga. Mas vim ver meu filho também.” Estou
surpreso; só com 23 anos ele já tem gerou seu pequeno Hoffmann. “E a mãe dele
está aqui. Aí preciso usar minha chance de ver o kleinen Mann. Não vejo muito meu filho, sabe.”
Rápidas
contemplações ao fundo da alma alheia em incursões espontâneas a intimidade de
um estranho simpático, como café instantâneo sem açúcar. Pergunto por mais
detalhes, e Darwin está pensando em alguma outra coisa. Gabriel aponta para a
janela, em algum ponto longe:
“Berlin
não tem montanhas. Sempre falo ao kleinen
Mann sobre como são grandes os vales e montes da Baviera. É bem engraçado
quando estamos com o carro na Autobahn,
e ele se entusiasma com qualquer morrinho que vai aparecendo. ‘São as
montanhas?’, ele me pergunta. E eu digo ‘calma, vais ver só quando chegarmos
nas montanhas de Oberbayern’.” E
suspira.
Berlin,
de fato, praticamente não tem nenhuma elevação como há no sul. No máximo há o Teufelsberg, “morro do diabo”,
construído com escombros e restos de prédios trazidos abaixo pela Segunda Guerra
Mundial. E a noção de que o único morro — ou um dos poucos morros — que o
pequeno Hoffmann teria para ver aqui fora feito como cicatrizes de entulhos e
restos de bombas era uma lembrança meio tétrica da cidade onde estávamos. A
história dele dispersou-se no ar, enquanto nossos pensamentos iam se fazendo presentes
em algum outro lugar.
Gabriel fora buscar na memória a voz do filho, os
argumentos aos ex-sogros que não falavam alemão, e o melhor caminho às
montanhas sul. Herr Reuß alisava a careca, preocupado com a hora. Darwin
lembrava os uniformes de soldados abatidos no museu do abrigo anti-bomba que havíamos
visto algumas semanas antes, com o capacete de tamanho infantil danificado com
um buraco de bala na nuca. E eu assistia como ficávamos assustadoramente fora
de contexto, diante dessas histórias contadas por cada um que não faziam muito
nexo entre si.
Éramos
praticamente a biblioteca infinita descrita por Borges, populando a Terra com
infinitas possibilidades que não necessariamente acrescentam algo. Achei-nos similares
aos livros que, quase como cópias, diferiam uns dos outros por apenas meia
dúzia de caracteres. Mas os contrastes aqui se baseavam nos nossos próprios
rostos, ao passo que as narrativas permaneciam, de certa maneira, as mesmas.
Quero
dizer, estavam lá de qualquer forma o pai divorciado, o imigrante, o herdeiro
do país pós-guerra, o Dean Moriarty repensado,
e o fã de Kafka que não vê coerência nessa miríade de vidas esbarrando-se umas
nas outras na casualidade das manhãs de quinta-feira. Suspeitei que essa
conversa já fora tida anteriormente por outras pessoas em algum outro trem, sei
lá onde.
Senti
muita vontade de começar a explicar ao Darwin o que me passava pela cabeça, mas
acho que não saberia formular a ideia. Queria principalmente dizê-lo que éramos
uma fração de nada na vida de algum estranho que parara para conversar conosco,
e nosso papel de figurante naquela viagem de trem que Lena, Gabriel e Herr
Preuß fizeram nos tornava absolutamente secundário na ótica deles.
“Darwin,
você não percebe?!”, eu teria dito se tivesse tomado café demais. “Provavelmente
somos apenas relevantes no contexto das nossas próprias vidas, ou no máximo de
uma meia-dúzia delas! De resto somos apenas a maldita janela acesa vista de
longe!”, e aí eu o seguraria pelos ombros e chacoalharia, querendo dizer,
naturalmente, que contamos histórias para gravar nossas iniciais no cimento
molhado deste momento.
Mas em um mar de iniciais gravadas no cimento, somos
apenas o detalhe pequeno de uma figura muito maior. Nossa individualidade não
tem muito propósito se pensarmos nela como dissolvida no grande caldeirão que é
a coletividade. Ou talvez nossas histórias componham algum mosaico que não
conseguimos contemplar olhando por trás das nossas próprias vidas. Ou alguma coisa
assim. Nisso, aproximávamo—nos de Zoologischer
Garten, onde iríamos desembarcar, e começamos a fazer menção de sair.
“Ah,
vocês saem aqui?”, perguntou Gabriel. “Então, foi um prazer falar com vocês!” E
aí, no que fez dele um final de conversa memorável, o pai do kleinen Mann nos deu seu momento de
lição de vida questionável: “Só tenham cuidado com as mulheres, sabe. Elas vão
tirar tudo de vocês, até que vocês não tenham nem mais as calças”,
referindo-se, é claro, à sua ex-mulher. E aí nos deu um olhar sisudo de quem
havia pronunciado uma máxima de profundo conhecimento.
Darwin
e eu rimos e nos entreolhamos. “Pode deixar”, disse. Saímos do trem. Herr Preuß
achava graça, e a última coisa que ouvi antes de pisar na plataforma de trem de
Zoologischer Garten foi ele dizer que
Gabriel, afinal de contas, não sabia de nada.
Mais
ou menos às 10h da manhã daquela quinta-feira, o trem de onde saímos continuou
rumo a Spandau, bem ao leste de Berlin. Nunca mais viríamos Gabriel e Herr
Preuß em nossas vidas, e não sabia dizer se isso era bom ou não. Só sei que, ao
atingir o nível térreo da estação, vi algumas pessoas tomando espressos em um café por ali, e tive
vontade de sentar e perguntar alguma coisa sem noção sobre o que eles achavam de ser somente a visão de alguém
tomando um pequeno gole de café no segundo plano, um borrão de tráfego passando
rápido pela rodovia, uma janela acesa na alvorada, algum cenário sonolento no
final de uma manhã de quinta-feira. Talvez chacoalhando-os pelos ombros também,
como teria feito com Darwin.
Mas
não o fiz, ainda bem. Íamos nos encontrar à noite com mais vários estudantes
gringos, e talvez esse papinho casasse melhor com uma Berliner Kindl, a cerveja mais barata daqui.
--
4. Cadeados na
passagem da Rathaus Schöneberg
Na
semana seguinte, Darwin e eu tomávamos um caminho similar à universidade. No trecho
feito a pé, passando pelo parque da Rathaus
Schöneberg — prefeitura ou governo distrital do bairro de Schöneberg —,
onde há algumas décadas Kennedy fizera seu discurso “ich bin ein Berliner”, vi pela primeira vez depois de meses
passando por ali que há cadeados nos detalhes da lateral da ponte. Digo, não é
bem uma ponte, mas a passagem construída sobre o pequeno lago e o parque
adjacente tem muito cara de ponte para que eu a chame de outra coisa.
De
qualquer modo, lá estão os cadeados, posicionados até timidamente
considerando-se quantos cadeados se coloca em outras pontes. Ainda não tive a
oportunidade de estar em Colônia, mas sei que lá há uma ponte famosa por isso.
Em Portugal também, em algum lugar. Ali em Schöneberg,
portanto, eles são menos numerosos, mas isso também não tira a graça. Coloridos
com letras maiúsculas somadas umas as outras — onde João e Maria tornar-se-iam “J+M”
—, eles se tornam a mais viva ideia de gravar as nossas iniciais no cimento
molhado deste momento.
De
repente voltei a pensar nas pessoas que conhecera no trem dias antes, na
companhia de Darwin, a caminho de Zoologischer
Garten. Em ocasiões em que multidões tomassem a ponte para protestar,
digamos, contra a derrubada do que ainda há do Muro de Berlin, ou talvez contra
as últimas medidas imponderadas do governo Turco, os cadeados seriam ainda
menos que um pixel no campo de visão
de quem ali estivesse. Mas sua sutil existência, exatamente como detalhe quase
invisível, é o que fazia deles o detalhe mais bonito do cenário diante da
Rathaus Schöneberg.
Como
Darwin estava quieto naquele dia — ele tinha uma apresentação logo em seguida,
e costumava sentir-se muito desconfortável com a ideia —, pude deixa os
cadeados ali habitarem meu pensamento livremente. Aí me deixei levar pela
beleza do momento, especialmente porque era sexta-feira e o tempo estava bom.
15 graus e sol, quase sem nuvens.
De
todo modo, lá estavam os cadeados, como corações pulsando sem mover-se. Eles
brilhavam no dourado do metal polido os raios de sol, e com isso, refletiam as
letras lá escritas como pequenos projetores. E aí me ocorreu a beleza do oposto
de tudo o que eu pensara até então: as janelas no plano de fundo de algum
crepúsculo são, na verdade, uma parte indispensável dos cenários de qualquer
um.
Quero
dizer, são os estranhos tomando café na estação de Zoologischer Garten que, mais do que meros figurantes das nossas
vidas, povoam vividamente um mundo aparentemente desconexo e sem sentido. Diria
até que todas as histórias vistas ou ouvidas ao mesmo tempo — como se
pudéssemos entrar na cabeça de Lena, Freddie, Herr Preuß, Darwin, Gabriel e até
do kleinen Mann, revivendo
integralmente todos os seus dias para entender suas olheiras e deixar de ser
mais do que um borrão na visão ou outro passageiro qualquer no mesmo vagão de
trem — talvez estourassem a capacidade de nossa cabeça.
E 'estourar' é a palavra certa, porque me vem à cabeça a figura de um balão,
inchado quase além da sua capacidade. É justo que vejamos só a mínima fração
de todas as pessoas, porque o resto fica a cargo da imaginação. E uma troca de
olhar é suficiente para comunicar muito, como deu a entender, por exemplo, o Herr Preuß.
Enfim,
como porta-voz do meu próprio coração afoito, calcando batidas desenganadas contra
minhas costelas já consumidas pela saudade, gostaria de ter estado lá no trem,
na ocasião da conversa com o Gabriel, também na companhia da detentora da outra
letra maiúscula que há de ser gravada ainda no cadeado que será pendurado por
aí. (‘genau, ich rede von dir!’)
Tudo
isso porque, nesse caso, teríamos sido uma visão mais interessante ao Gabriel,
quem sabe uma fagulha para que ele fosse repensar aquela lição de vida dada ao
final da viagem de trem. Herr Hoffmann talvez tomasse por bem-vinda visão
qualquer demonstração de paixão dada gratuitamente nos vagões que ocuparíamos,
como artistas virtuosos tocando seus instrumentos nos túneis da cidade.
Às
vezes mesmo o mais breve momento extraordinário pode ser suficiente palheta de
sensações que, como uma verve incontrolável, atiça por inteiro a alma de quem
os testemunha. As janelas que brilham no segundo plano são até insignificantes
na sua função como fração do cenário inteiro — mas são indispensáveis pelo
brilho que as torna chamarizes, centelhas e fagulhas de inspiração, pretextos
de entusiasmada taquicardia ou pontos coloridos para os olhos atentos à beleza
da sutileza.
--
sonder
n. the realization that each random passerby is living a life as vivid and complex as your own—populated with their own ambitions, friends, routines, worries and inherited craziness—an epic story that continues invisibly around you like an anthill sprawling deep underground, with elaborate passageways to thousands of other lives that you’ll never know existed, in which you might appear only once, as an extra sipping coffee in the background, as a blur of traffic passing on the highway, as a lighted window at dusk.
--
our initials carved on the wet cement of this moment:
http://mundoderascunhos.blogspot.com.br/2013/05/passerby-craziness.html