As mangas e
carambolas rotas são ornamentos comuns dos passeios e veredas pelas ruas de
Assunção. Entre as rachaduras da calçada, brotam flores e se decompõem os
frutos das tantas árvores que se espalham por qualquer lado da capital paraguaia.
Poderia se dizer
até que o Paraguai, à primeira vista, serve de metáfora para o próprio Paraguai.
Some-se a isso o
som da cumbia onipresente, os ônibus
coloridos e a atmosfera pulsante do país e você tem, à primeira vista, o mesmo
cartão de visita que teria qualquer viajante a adentrar o Paraguai e suas
cidades injustamente infames. É sempre uma visão divertida.
Não nos
atenhamos a isso por ora.
Voltemos um
instante às árvores de fruta como ponto de partida. Tal como nas calles e avenidas, o panorama do quintal
da família Arámbulo se dividia igualmente entre um sobrado de fachada vagamente
espanhola e os arbustos e o pé de carambola.
Usualmente, a
casa oferece ao ocupante temporário a sensação de se habitar um corpo vivo. Os
cães rondam a casa industriosamente Carros entram e saem, de modo que sempre se
pode ouvir um motor roncando. E mesmo o visitante mais introspectivo sempre se
de deparará com mais uma conversa e mais uma cuia de tererê gelado.
Na metade desse
verão, estamos sem a Polka Paraguaia de costume. É fim de tarde num domingo
desses que serve para pouco além de comer, dormir e perder a carteira.
“Negrito se murió”, diz madre de supetão, surgindo pela porta
sem cerimônias.
Estamos sentados
na sala trabalhando. É evidente que a surpresa nos assusta. Negrito era o mais velho dos cães,
grisalho e débil, que enfim resolvera deixar de lutar com sua própria falta de
vitalidade.
Hermana a encara surpresa.
“Puedes imaginar el estado de tu
abuelo y abuela”, diz Madre, fitando a Hermana.
Hermana não reage de pronto. O
silêncio permanece suspenso no ar por mais alguns momentos, até que Madre deixa o quarto de novo.
Tardo a reagir. Ao
enfim me dirigir ao quintal, a casa parece ter se mantido em estado de suspensão:
a televisão dialoga sozinha com seu espanhol embolado, e o ventilador de teto
gira à toa.
No quintal,
enfim, a família assiste Cuñado e Hermano cavarem uma pequena cova sob o
pé de carambola.
Abuelo e Abuela são efetivamente os que mais
sofrem. O aspecto brincalhão ou dócil de ambos agora se mantém velado e
sufocado. Ao seu entorno, Madre e Cuñada velam o cão discretamente, ao
passo que tentam distrair Sobrino e Sobrina de se darem conta do que
realmente passou.
As moscas que
normalmente voam em torno dos frutos em decomposição agora rondam agitadas o
cadáver de Negrito, estirado no chão
em seu canto de sempre.
Aproximo-me de Abuelo e Abuela.
“Lo siento”, digo-lhes
atrapalhadamente, como normalmente fazia em função do meu espanhol bagunçado. “Por
el perro. Es una lastima”, digo
e repouso uma mão sobre o ombro de Abuelo.
Ambos me
sinalizam genéricamente que estaría tudo bem. Não está, é claro, mas que eu não
me preocupasse.
Kiki, o outro
cão, corre animado por minhas pernas. Ao fundo, Cuñado e Hermano cavam
diligentemente a cova de Negrito.
“E sabes que o
cão sempre volta para casa, não é verdade?”, me diz Abuelo.
Abuela nos observa,
esperando a deixa de censurar uma galhofa de Abuelo.
“Sim, é verdade.
E o gato e o kavaju também”, conta.
Me parece ser
uma anedota demasiado distante da situação que estamos, mas sem dúvida qualquer
distração é certamente melhor do que ir muito a fundo na situação já declarada
da morte de Negrito. Seu rosto
avermelhado e inchado mostra fagulhas de alegria ao dissertar sobre qualquer
outra coisa e deixar aflorar alguma broma.
“Tínhamos um
gato branco e belíssimo há muito tempo. E na Costanera tem um clube náutico, certo? Então. Um dia, por exemplo,
fui até lá com um compañero deixar o
gato para que não voltasse, e depois fomos comer pescado ali por perto.”
Ele inclina sua
cabeça e me olha por cima dos óculos tortos.
“E aí pegamos o
carro e voltamos. Adivinha o que aconteceu? É claro, o gato estava lá
tranquilo, como se absolutamente nada tivesse acontecido.”
Abuela intercede.
“Los perros también. Aquele ali só vai até
a esquina, mas o outro conhece o bairro todo. Sai correndo pela porta, explora
uns tantos quarteirões e depois retorna logo mais”, afirma.
É bom saber que
o Negrito deixou sua mente
momentaneamente. Se não fosse por sua cova e as pás arremessando terra para o
alto ao fundo, o domingo certamente teria passado batido de tão ordinário.
Abuelo segue.
“E um compañero meu tinha um kavaju também que era excepcional. Muito
manso. Ele tprecisava frequentemente dirigir suas carroças para levar
encomendas por aí, e para isso usava o cavalo”, contava. “Y bueno, te dizia que, se você não deixa o gato ou o cavalo do
outro lado de um rio ou algo assim, eles inevitavelmente voltam.”
Abuela assentia.
“E você sabe que
um dia pediram esse cavalo emprestado. Así
nomás. Disseram ‘vou ali, usar o cavalo só um pouco e te devolvo amanhã’,
meu compañero concordou, e lá se
foram com o cavalo”, dizia. “O cavalo era muito manso. Foi tranquilo, como se
não fosse nada.”
Ao fundo, Madre distraía Sobrino para que não ficasse muito curioso com aquele buraco enorme
no chão.
“E no dia
seguinte, quando foram buscar o kavaju, ele
não estava mais lá. Assim mesmo, simplesmente não estavam. Até perguntou como,
e responderam que não sabiam, ‘fomos ali fazer não sei o que’, e pronto. O
cavalo se foi.”
“E então?
Encontraram o cavalo?”, perguntei.
“A verdade é que
não. O buscaram e não encontraram em lugar nenhum. Mas ao cabo de três dias—“
“Ele apareceu?”
“Sim, apareceu.
No terceiro dia ele de repente voltou trotando tranquilíssimo, entrou pela
porteira que ficara aberto e se pôs em seu lugar onde sempre ficava”, conclui. “Gatos
e cavalos sempre voltam a sua casa. Cachorros também”, me diz.
Nisso, Cuñado e Hermano resolvem enterrar o cão, e o pegam pelas patas. A visão ao
fundo passa a ser de Negrito sendo
carregado como se fosse um pedaço de carnes e ossos.
Abuela e Abuelo os acompanham, enquanto os demais
se retiram.
Negrito parece não se
acomodar muito bem no buraco que fora cavado, mas logo é ajeitado pelos dois
que prepararam seu sepulcro. Seus olhos entreabertos são uma visão tétrica, e
triste para os dois mais velhos ali parados.
A terra volta a
ser jogada no buraco, tapando Negrito com
baques surdos e concluindo o rito aos poucos. Penso no meu próprio avô, agora
falecido, e no jeito jocoso com que tratava a morte, mesmo em uma cerimônia
bastante parecida ainda no Brasil. Não
consigo deixar de pensar que talvez ali ambos contemplem sua própria
efemeridade e isso os entristeça de igual maneira.
A bem da
verdade, todo o cenário se anuncia dessa maneira, com as carambolas suculentas
e rotas no chão, e mesmo cos primeiros passos de Sobrina em contraponto com o cambaleio decrépito de Abuelo.
Logo mais
tornamos a sentar. Abuelo sorve seu
tererê pensativo.
O cão sempre
sabe aonde voltar, assim como o cavalo e o gato, a não ser que se ponha um
obstáculo suficientemente grande para os segurar alhures e forçar seu abandono.
De igual forma, Madre, Hermana, Sobrinos,
Abuelos e Cuñados se puseram em
suas posições anteriores. Seguem com sua aparente função na casa e no seu ofício particular à posição ocupada: fazer a comida, sorver outra cuia de yerba, distrair as crianças ou o que fosse.
De igual modo, os cães tornaram
a rondar a casa. Alguém ligou o carro e o manobrou para sair de novo. Outra
carambola caía no gramado, e as moscas voavam em círculos incautas e ansiosas
por qualquer matéria decomposta e convenientemente jogada pelo quintal.
Meu tempo no
Paraguai é curto. Não terei muito tempo para pensar nas rachaduras na calçada e
nos encaixes improvisados entre as tantas camadas de gente e os contextos
extensos desse país inusitado.
Mas a pergunta
permanece. Se o kavaju estiver certo,
todos voltamos eventualmente para nossos lugares e nos colocamos onde
deveríamos. E assim se põe o sol, e tudo deve seguir como se espera, com ou sem
o Negrito enterrado sob algum
arbusto.
Resta saber aonde vou eu.
bravo!
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