Harper Lee: "O Sol É Para Todos" (To Kill a Mockingbird)
Capítulo 23, pp. 282-283.
***
— Sabe de uma coisa, Scout? Agora entendi tudo. Tenho
pensado bastante nisso ultimamente e entendi. Há quatro tipos de gente no
mundo: as pessoas comuns como nós e nossos vizinhos; as que vivem no mato como
os Cunningham; as que vivem no lixão como os Ewell, e os negros.
—
E os chineses? E os cajun que vivem
no condado de Baldwin?
—
Estou falando de Maycomb. O problema aqui é que nós não gostamos dos
Cunningham, que não gostam dos Ewell, que, por sua vez, odeiam e desprezam os
negros.
Retruquei
que, se era assim, por que o júri, formado por gente como os Cunningham, não
absolveu Tom para irritar os Ewell?
Jem
ignorou minha pergunta por considera-la pueril.
—
Sabe, já vi Atticus acompanhar o ritmo de uma rabeca com os pés quando toca uma
música no rádio. E ninguém gosta mais de um caldo de legumes do que ele.
—
Então somos parecidos com os Cunningham. Não sei por que a tia...
—
Espera, deixa eu terminar. Somos parecidos sim, mas ao mesmo tempo diferentes.
Atticus uma vez disse que a tia dá tanta importância a essa história de berço
porque é só o que temos, não temos um centavo.
— Bom,
Jem, não sei... Atticus uma vez também me disse que essa história de “família antiga”
é bobagem, porque todas as famílias são antigas. Perguntei se isso incluía os
negros e os ingleses e ele respondeu que sim.
—
Berço não é a mesma coisa que família antiga, acho que quer dizer há quanto
tempo as pessoas daquela família sabem ler e escrever. Scout, estudei muito o
assunto e essa é a única razão que encontrei. Um dia, quando os Finch ainda
estavam no Egito, um deles deve ter aprendido um ou dois hieróglifos e ensinou ao filho —
Jem riu. — Imagino a tia toda orgulhosa porque o tataravô dela sabia ler
e escrever... As mulheres se orgulham de cada coisa.
—
Bom, ainda bem que o tataravô aprendeu, senão quem ia ensinar Atticus? E se ele
não soubesse ler, você e eu ficaríamos num mato sem cachorro. Não acho que
berço seja isso, Jem.
—
Então como explicar o fato de os Cunningham serem diferentes? O sr. Walter mal
sabe assinar o nome, eu já vi. Nós sabemos ler e escrever há mais tempo do que
eles.
—
Mas todo mundo tem que aprender, ninguém nasce sabendo. Walter é muito
inteligente, ele só se atrasa na escola porque tem que ajudar o pai. Não tem
nada de errado com ele. Olha, Jem, eu acho que só existe um tipo de gente:
gente.
Jem
virou-se e deu um soco no travesseiro. Quando se recostou de novo, parecia
confuso. Ia dar uma de suas descidas ao fundo dele mesmo e fiquei preocupada.
Suas sobrancelhas se juntaram, a boca virou uma linha fina. Ele ficou em
silêncio por um tempo.
—
Eu também achava isso — ele disse, por fim —, quando tinha a sua
idade. Se só existe um tipo de gente, porque as pessoas não se entendem? Se são
todos iguais, por que se esforçam para desprezar uns aos outros? Scout, acho
que estou começando a entender uma coisa. Acho que estou começando a entender
por que Boo Radley ficou trancado em casa todo esse tempo... é porque ele quer ficar lá dentro.
***
5ª Edição (2015), pela editora "José Olympio", tradução de Beatriz Horta. Incrível!
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