domingo, 22 de maio de 2016
Heads up
O porquê de você estar aqui nessa página e lendo este post é algo que me desperta curiosidade. Em todo caso, vale o aviso: pelo layout mais bonito e para ter um backup, esse blog está também pelo Wordpress agora.
Link: https://ihopethisisnttheend.wordpress.com/. Have fun ;)
Só existe um tipo de gente
Harper Lee: "O Sol É Para Todos" (To Kill a Mockingbird)
Capítulo 23, pp. 282-283.
***
— Sabe de uma coisa, Scout? Agora entendi tudo. Tenho
pensado bastante nisso ultimamente e entendi. Há quatro tipos de gente no
mundo: as pessoas comuns como nós e nossos vizinhos; as que vivem no mato como
os Cunningham; as que vivem no lixão como os Ewell, e os negros.
—
E os chineses? E os cajun que vivem
no condado de Baldwin?
—
Estou falando de Maycomb. O problema aqui é que nós não gostamos dos
Cunningham, que não gostam dos Ewell, que, por sua vez, odeiam e desprezam os
negros.
Retruquei
que, se era assim, por que o júri, formado por gente como os Cunningham, não
absolveu Tom para irritar os Ewell?
Jem
ignorou minha pergunta por considera-la pueril.
—
Sabe, já vi Atticus acompanhar o ritmo de uma rabeca com os pés quando toca uma
música no rádio. E ninguém gosta mais de um caldo de legumes do que ele.
—
Então somos parecidos com os Cunningham. Não sei por que a tia...
—
Espera, deixa eu terminar. Somos parecidos sim, mas ao mesmo tempo diferentes.
Atticus uma vez disse que a tia dá tanta importância a essa história de berço
porque é só o que temos, não temos um centavo.
— Bom,
Jem, não sei... Atticus uma vez também me disse que essa história de “família antiga”
é bobagem, porque todas as famílias são antigas. Perguntei se isso incluía os
negros e os ingleses e ele respondeu que sim.
—
Berço não é a mesma coisa que família antiga, acho que quer dizer há quanto
tempo as pessoas daquela família sabem ler e escrever. Scout, estudei muito o
assunto e essa é a única razão que encontrei. Um dia, quando os Finch ainda
estavam no Egito, um deles deve ter aprendido um ou dois hieróglifos e ensinou ao filho —
Jem riu. — Imagino a tia toda orgulhosa porque o tataravô dela sabia ler
e escrever... As mulheres se orgulham de cada coisa.
—
Bom, ainda bem que o tataravô aprendeu, senão quem ia ensinar Atticus? E se ele
não soubesse ler, você e eu ficaríamos num mato sem cachorro. Não acho que
berço seja isso, Jem.
—
Então como explicar o fato de os Cunningham serem diferentes? O sr. Walter mal
sabe assinar o nome, eu já vi. Nós sabemos ler e escrever há mais tempo do que
eles.
—
Mas todo mundo tem que aprender, ninguém nasce sabendo. Walter é muito
inteligente, ele só se atrasa na escola porque tem que ajudar o pai. Não tem
nada de errado com ele. Olha, Jem, eu acho que só existe um tipo de gente:
gente.
Jem
virou-se e deu um soco no travesseiro. Quando se recostou de novo, parecia
confuso. Ia dar uma de suas descidas ao fundo dele mesmo e fiquei preocupada.
Suas sobrancelhas se juntaram, a boca virou uma linha fina. Ele ficou em
silêncio por um tempo.
—
Eu também achava isso — ele disse, por fim —, quando tinha a sua
idade. Se só existe um tipo de gente, porque as pessoas não se entendem? Se são
todos iguais, por que se esforçam para desprezar uns aos outros? Scout, acho
que estou começando a entender uma coisa. Acho que estou começando a entender
por que Boo Radley ficou trancado em casa todo esse tempo... é porque ele quer ficar lá dentro.
***
5ª Edição (2015), pela editora "José Olympio", tradução de Beatriz Horta. Incrível!
domingo, 7 de fevereiro de 2016
Negrito
As mangas e
carambolas rotas são ornamentos comuns dos passeios e veredas pelas ruas de
Assunção. Entre as rachaduras da calçada, brotam flores e se decompõem os
frutos das tantas árvores que se espalham por qualquer lado da capital paraguaia.
Poderia se dizer
até que o Paraguai, à primeira vista, serve de metáfora para o próprio Paraguai.
Some-se a isso o
som da cumbia onipresente, os ônibus
coloridos e a atmosfera pulsante do país e você tem, à primeira vista, o mesmo
cartão de visita que teria qualquer viajante a adentrar o Paraguai e suas
cidades injustamente infames. É sempre uma visão divertida.
Não nos
atenhamos a isso por ora.
Voltemos um
instante às árvores de fruta como ponto de partida. Tal como nas calles e avenidas, o panorama do quintal
da família Arámbulo se dividia igualmente entre um sobrado de fachada vagamente
espanhola e os arbustos e o pé de carambola.
Usualmente, a
casa oferece ao ocupante temporário a sensação de se habitar um corpo vivo. Os
cães rondam a casa industriosamente Carros entram e saem, de modo que sempre se
pode ouvir um motor roncando. E mesmo o visitante mais introspectivo sempre se
de deparará com mais uma conversa e mais uma cuia de tererê gelado.
Na metade desse
verão, estamos sem a Polka Paraguaia de costume. É fim de tarde num domingo
desses que serve para pouco além de comer, dormir e perder a carteira.
“Negrito se murió”, diz madre de supetão, surgindo pela porta
sem cerimônias.
Estamos sentados
na sala trabalhando. É evidente que a surpresa nos assusta. Negrito era o mais velho dos cães,
grisalho e débil, que enfim resolvera deixar de lutar com sua própria falta de
vitalidade.
Hermana a encara surpresa.
“Puedes imaginar el estado de tu
abuelo y abuela”, diz Madre, fitando a Hermana.
Hermana não reage de pronto. O
silêncio permanece suspenso no ar por mais alguns momentos, até que Madre deixa o quarto de novo.
Tardo a reagir. Ao
enfim me dirigir ao quintal, a casa parece ter se mantido em estado de suspensão:
a televisão dialoga sozinha com seu espanhol embolado, e o ventilador de teto
gira à toa.
No quintal,
enfim, a família assiste Cuñado e Hermano cavarem uma pequena cova sob o
pé de carambola.
Abuelo e Abuela são efetivamente os que mais
sofrem. O aspecto brincalhão ou dócil de ambos agora se mantém velado e
sufocado. Ao seu entorno, Madre e Cuñada velam o cão discretamente, ao
passo que tentam distrair Sobrino e Sobrina de se darem conta do que
realmente passou.
As moscas que
normalmente voam em torno dos frutos em decomposição agora rondam agitadas o
cadáver de Negrito, estirado no chão
em seu canto de sempre.
Aproximo-me de Abuelo e Abuela.
“Lo siento”, digo-lhes
atrapalhadamente, como normalmente fazia em função do meu espanhol bagunçado. “Por
el perro. Es una lastima”, digo
e repouso uma mão sobre o ombro de Abuelo.
Ambos me
sinalizam genéricamente que estaría tudo bem. Não está, é claro, mas que eu não
me preocupasse.
Kiki, o outro
cão, corre animado por minhas pernas. Ao fundo, Cuñado e Hermano cavam
diligentemente a cova de Negrito.
“E sabes que o
cão sempre volta para casa, não é verdade?”, me diz Abuelo.
Abuela nos observa,
esperando a deixa de censurar uma galhofa de Abuelo.
“Sim, é verdade.
E o gato e o kavaju também”, conta.
Me parece ser
uma anedota demasiado distante da situação que estamos, mas sem dúvida qualquer
distração é certamente melhor do que ir muito a fundo na situação já declarada
da morte de Negrito. Seu rosto
avermelhado e inchado mostra fagulhas de alegria ao dissertar sobre qualquer
outra coisa e deixar aflorar alguma broma.
“Tínhamos um
gato branco e belíssimo há muito tempo. E na Costanera tem um clube náutico, certo? Então. Um dia, por exemplo,
fui até lá com um compañero deixar o
gato para que não voltasse, e depois fomos comer pescado ali por perto.”
Ele inclina sua
cabeça e me olha por cima dos óculos tortos.
“E aí pegamos o
carro e voltamos. Adivinha o que aconteceu? É claro, o gato estava lá
tranquilo, como se absolutamente nada tivesse acontecido.”
Abuela intercede.
“Los perros también. Aquele ali só vai até
a esquina, mas o outro conhece o bairro todo. Sai correndo pela porta, explora
uns tantos quarteirões e depois retorna logo mais”, afirma.
É bom saber que
o Negrito deixou sua mente
momentaneamente. Se não fosse por sua cova e as pás arremessando terra para o
alto ao fundo, o domingo certamente teria passado batido de tão ordinário.
Abuelo segue.
“E um compañero meu tinha um kavaju também que era excepcional. Muito
manso. Ele tprecisava frequentemente dirigir suas carroças para levar
encomendas por aí, e para isso usava o cavalo”, contava. “Y bueno, te dizia que, se você não deixa o gato ou o cavalo do
outro lado de um rio ou algo assim, eles inevitavelmente voltam.”
Abuela assentia.
“E você sabe que
um dia pediram esse cavalo emprestado. Así
nomás. Disseram ‘vou ali, usar o cavalo só um pouco e te devolvo amanhã’,
meu compañero concordou, e lá se
foram com o cavalo”, dizia. “O cavalo era muito manso. Foi tranquilo, como se
não fosse nada.”
Ao fundo, Madre distraía Sobrino para que não ficasse muito curioso com aquele buraco enorme
no chão.
“E no dia
seguinte, quando foram buscar o kavaju, ele
não estava mais lá. Assim mesmo, simplesmente não estavam. Até perguntou como,
e responderam que não sabiam, ‘fomos ali fazer não sei o que’, e pronto. O
cavalo se foi.”
“E então?
Encontraram o cavalo?”, perguntei.
“A verdade é que
não. O buscaram e não encontraram em lugar nenhum. Mas ao cabo de três dias—“
“Ele apareceu?”
“Sim, apareceu.
No terceiro dia ele de repente voltou trotando tranquilíssimo, entrou pela
porteira que ficara aberto e se pôs em seu lugar onde sempre ficava”, conclui. “Gatos
e cavalos sempre voltam a sua casa. Cachorros também”, me diz.
Nisso, Cuñado e Hermano resolvem enterrar o cão, e o pegam pelas patas. A visão ao
fundo passa a ser de Negrito sendo
carregado como se fosse um pedaço de carnes e ossos.
Abuela e Abuelo os acompanham, enquanto os demais
se retiram.
Negrito parece não se
acomodar muito bem no buraco que fora cavado, mas logo é ajeitado pelos dois
que prepararam seu sepulcro. Seus olhos entreabertos são uma visão tétrica, e
triste para os dois mais velhos ali parados.
A terra volta a
ser jogada no buraco, tapando Negrito com
baques surdos e concluindo o rito aos poucos. Penso no meu próprio avô, agora
falecido, e no jeito jocoso com que tratava a morte, mesmo em uma cerimônia
bastante parecida ainda no Brasil. Não
consigo deixar de pensar que talvez ali ambos contemplem sua própria
efemeridade e isso os entristeça de igual maneira.
A bem da
verdade, todo o cenário se anuncia dessa maneira, com as carambolas suculentas
e rotas no chão, e mesmo cos primeiros passos de Sobrina em contraponto com o cambaleio decrépito de Abuelo.
Logo mais
tornamos a sentar. Abuelo sorve seu
tererê pensativo.
O cão sempre
sabe aonde voltar, assim como o cavalo e o gato, a não ser que se ponha um
obstáculo suficientemente grande para os segurar alhures e forçar seu abandono.
De igual forma, Madre, Hermana, Sobrinos,
Abuelos e Cuñados se puseram em
suas posições anteriores. Seguem com sua aparente função na casa e no seu ofício particular à posição ocupada: fazer a comida, sorver outra cuia de yerba, distrair as crianças ou o que fosse.
De igual modo, os cães tornaram
a rondar a casa. Alguém ligou o carro e o manobrou para sair de novo. Outra
carambola caía no gramado, e as moscas voavam em círculos incautas e ansiosas
por qualquer matéria decomposta e convenientemente jogada pelo quintal.
Meu tempo no
Paraguai é curto. Não terei muito tempo para pensar nas rachaduras na calçada e
nos encaixes improvisados entre as tantas camadas de gente e os contextos
extensos desse país inusitado.
Mas a pergunta
permanece. Se o kavaju estiver certo,
todos voltamos eventualmente para nossos lugares e nos colocamos onde
deveríamos. E assim se põe o sol, e tudo deve seguir como se espera, com ou sem
o Negrito enterrado sob algum
arbusto.
Resta saber aonde vou eu.
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016
"As Duas Lanternas", de Ramón Campoamor
Las dos linternas
I.
De Diógenes compré un día
la linterna a un mercader;
distan la suya y la mía
cuanto hay de ser a no ser.
Blanca la mía parece;
la suya parece negra;
la de él todo lo entristece;
la mía todo lo alegra.
Y es que en el mundo traidor
nada hay verdad ni mentira:
«todo es según el color
del cristal con que se mira».
II.
-Con m linterna -él decía-,
no hallo un hombre entre los seres-.
¡Y yo que hallo con la mía
hombres hasta en las mujeres!
¡El llamó, siempre implacable
fe y virtud teniendo en poco,
a Alejandro, un miserable,
y al gran Sócrates, un loco.
Y yo ¡crédulo!, entretanto,
cuando mi linterna empleo,
miro aquí, y encuentro un «santo»:
miro allá, y un «mártir» veo.
¡Sí!, mientras la multitud
sacrifica con paciencia
la dicha por la virtud
y por la fe la existencia,
para él virtud fue simpleza,
el más puro amor escoria,
vana ilusión la grandeza,
y una necedad la gloria.
¡Diógenes! Mientras tu celo
sólo encuentra sin fortuna,
en Esparta algún «chicuelo»
y hombres en parte ninguna,
yo te juro por mi nombre
que, con sufrir el nacer,
es un héroe cualquier hombre,
y un ángel toda mujer.
III.
Como al revés contemplamos
yo y él las obras de Dios,
Diógenes o yo engañamos.
¿Cuál mentirá de los dos?
¿Quién es en pintar más fiel
las obras que Dios crió?
El cinismo dirá que él;
la virtud dirá que yo.
Y es que en el mundo traidor
nada hay verdad ni mentira:
«todo es según el color
del cristal con que se mira».
I.
De Diógenes compré un día
la linterna a un mercader;
distan la suya y la mía
cuanto hay de ser a no ser.
Blanca la mía parece;
la suya parece negra;
la de él todo lo entristece;
la mía todo lo alegra.
Y es que en el mundo traidor
nada hay verdad ni mentira:
«todo es según el color
del cristal con que se mira».
II.
-Con m linterna -él decía-,
no hallo un hombre entre los seres-.
¡Y yo que hallo con la mía
hombres hasta en las mujeres!
¡El llamó, siempre implacable
fe y virtud teniendo en poco,
a Alejandro, un miserable,
y al gran Sócrates, un loco.
Y yo ¡crédulo!, entretanto,
cuando mi linterna empleo,
miro aquí, y encuentro un «santo»:
miro allá, y un «mártir» veo.
¡Sí!, mientras la multitud
sacrifica con paciencia
la dicha por la virtud
y por la fe la existencia,
para él virtud fue simpleza,
el más puro amor escoria,
vana ilusión la grandeza,
y una necedad la gloria.
¡Diógenes! Mientras tu celo
sólo encuentra sin fortuna,
en Esparta algún «chicuelo»
y hombres en parte ninguna,
yo te juro por mi nombre
que, con sufrir el nacer,
es un héroe cualquier hombre,
y un ángel toda mujer.
III.
Como al revés contemplamos
yo y él las obras de Dios,
Diógenes o yo engañamos.
¿Cuál mentirá de los dos?
¿Quién es en pintar más fiel
las obras que Dios crió?
El cinismo dirá que él;
la virtud dirá que yo.
Y es que en el mundo traidor
nada hay verdad ni mentira:
«todo es según el color
del cristal con que se mira».
domingo, 22 de novembro de 2015
Soneto para um dia de chuva
(De um caderno de 2009, encontrado em meio a partituras velhas, papeis antigos e mais um monte de tralha, aqui transcrito para que não se perca.)
A chuva cai como quem diz
que vão-se embora tuas quarta-feiras de sol
As tardes, tempestades e mais um rol
de incontáveis motivos pra ser feliz
E é verdade que o relicário da minha memória
desconhece toda a glória dos dias que virão
Meu amor, é infinto, -- mais infinito que ontem
E muito mais forte que qualquer tufão
Mas ainda que chova durante a estiagem
e que fluam rios feitos de pretensão
Pouco se compara
à saudade que vou ter
das tempestades de verão
que só caíam em tua homenagem.
(13.01.2010, às 4am)
A chuva cai como quem diz
que vão-se embora tuas quarta-feiras de sol
As tardes, tempestades e mais um rol
de incontáveis motivos pra ser feliz
E é verdade que o relicário da minha memória
desconhece toda a glória dos dias que virão
Meu amor, é infinto, -- mais infinito que ontem
E muito mais forte que qualquer tufão
Mas ainda que chova durante a estiagem
e que fluam rios feitos de pretensão
Pouco se compara
à saudade que vou ter
das tempestades de verão
que só caíam em tua homenagem.
(13.01.2010, às 4am)
terça-feira, 10 de novembro de 2015
A ingenuidade dos meus 23 anos
Primeira Parte, Livro V, III: Os Irmãos Travam Amizade (pp. 234-235)
***
— Decerto, Ivã. Dimítri diz que és um túmulo. Eu digo que és um enigma. Tu o és ainda agora para mim, no entanto começo a compreender-te, desde esta manhã apenas.
— Que queres dizer? — Disse Ivã, rindo.
— Não te zangarás, pelo menos? — perguntou Aliócha, rindo também.
— E então?
— Então, descobri que és um rapaz semelhante a todos os outros, aos 23 anos, um rapaz bem viçoso, bem gentilmente ingênuo, um verdadeiro fedelho, em uma palavra. Minhas palavras não te ofendem?
— Pelo contrário, estou admirado duma coincidência — exclamou Ivã, com ímpeto. — Acreditarias que desde nossa entrevista desta manhã só penso na ingenuidade dos meus 23 anos, e é por isso que começas, como se o tivesse adivinhado? Sabes o que que dizia a mim mesmo ainda há pouco? Se não tivesse mais fé na vida, se duvidasse duma mulher amada, da ordem universal, persuadido ao contrário de que tudo não é senão um caos infernal e maldito e estivesse eu preso dos horrores da desilusão – mesmo então quereria viver ainda assim. Depois de ter bebido na taça encantada, só a deixaria uma vez esgotada. Aliás, perto dos trinta anos, pode ser que sinta saudade dela, mesmo inacabada, e irei... Não sei aonde. Mas, até os trinta anos, tenho a certeza, minha mocidade triunfará de tudo, do desencanto, do desgosto de viver. Muitas vezes tenho perguntado a mim mesmo se haveria no mundo um desespero capaz de vencer em mim esse furioso apetite de viver, inconveniente talvez; e penso que ele não existe, pelo menos antes de trinta anos. Esta sede de viver é chamada de vil por certos moralistas catarrentos e tuberculosos, sobretudo por poetas. É verdade que é um traço característico dos Karamázovi, essa sede de viver à qualquer preço; encontra-se em ti, mas por que haveria de ser vergonhosa? Há ainda muita força centrípeta em nosso planeta, Aliócha. Quer-se viver, e eu vivo, mesmo a despeito da lógica. Não creio na ordem universal, pois seja; mas amo os brotos tenros na primavera, o céu azul, amo certas pessoas, sem saber por quê; Amo o heroísmo, no qual talvez tenha deixado de crer desde muito tempo, mas que venero por hábito. Eis que te trazem a sopa de peixe. Bom apetite. É excelente, preparam-na bem aqui. Quero viajar pela Europa, Aliócha. Sei que não encontrei lá senão um cemitério, mas quão querido! Queridos mortos nele repousam, cada pedra atesta a vida ardente deles, sua fé apaixonada nos seus ideais, sua luta pela verdade e pela ciência. Oh! Cairei de joelhos diante daquelas pedras, beijá-las-ei, derramando lágrimas. Convencido, aliás, intimamente, de que tudo aquilo não é senão um cemitério e nada mais. E não serão lágrimas de desespero, mas de felicidade. Embriago-me com meu próprio enternecimento. Gosto dos brotos tenros da primavera e do céu azul. A inteligência e a lógica não entram nisso absolutamente, é o coração que ama, é o ventre, gosta-se de suas primeiras forças juvenis... Compreendes tu alguma coisa dessa minha arenga, Aliócha? — E Ivã pôs-se a rir.
— Compreendo por demais, Ivã; desejar-se ia amar pelo coração e pelo ventre, como bem o disseste. Estou encantado com esse teu ardor de viver. Penso que se deve amar a vida acima de tudo.
— Amar a vida, em vez do sentido da vida?
— Decerto. Amá-la antes de raciocinar, sem lógica, como dizes; então somente compreender-se-á o sentido dela. Eis o que entrevejo desde muito tempo. A metade de tua tarefa está realizada e adquirida, Ivã: amas a vida. Ocupate- com a segunda parte, é a salvação.
— Estás muito apressado em salvar-me, talvez não esteja eu ainda perdido. Em que consiste essa segunda parte?
— Em ressuscitar teus mortos, que estão talvez ainda vivos. Dá-me chá. Estou satisfeito com nossa conversa, Ivã.
— Vejo que estás de veia. Gosto dessas professions de foi, da parte de um noviço. Sim, tens firmeza, Alieksiéí. É verdade que queres deixar o mosteiro?
— Sim, meu stáriets me envia para o mundo.
(...)
***
[Disponível em: http://goo.gl/El2dVI]
quinta-feira, 25 de dezembro de 2014
Paul Verlaine - Clair de Lune
Sua alma é uma paisagem escolhida
aonde vão mascarados e bergamascos
a tocar o alaúde e dançar e quase
tristes debaixo de seus trajes fantásticos.
Todos cantam num tom menor
sobre amor vitorioso e a vida oportuna
Eles não parecem crer em sua felicidade
e sua canção se mistura ao luar.
Ao calmo luar, triste e belo,
que faz sonhar as avas nas árvores
e os jatos d'água soluçarem em êxtase,
Altas fontes esbeltas entre estátuas de mármore.
Votre âme est un paysage choisi
Que vont charmant masques et bergamasques
Jouant du luth et dansant et quasi
Tristes sous leurs déguisements fantasques.
Tout en chantant sur le mode mineur
L'amour vainqueur et la vie opportune
Ils n'ont pas l'air de croire à leur bonheur
Et leur chanson se mêle au clair de lune,
Au calme clair de lune triste et beau,
Qui fait rêver les oiseaux dans les arbres
Et sangloter d'extase les jets d'eau,
Les grands jets d'eau sveltes parmi les marbres.
aonde vão mascarados e bergamascos
a tocar o alaúde e dançar e quase
tristes debaixo de seus trajes fantásticos.
Todos cantam num tom menor
sobre amor vitorioso e a vida oportuna
Eles não parecem crer em sua felicidade
e sua canção se mistura ao luar.
Ao calmo luar, triste e belo,
que faz sonhar as avas nas árvores
e os jatos d'água soluçarem em êxtase,
Altas fontes esbeltas entre estátuas de mármore.
***
Votre âme est un paysage choisi
Que vont charmant masques et bergamasques
Jouant du luth et dansant et quasi
Tristes sous leurs déguisements fantasques.
Tout en chantant sur le mode mineur
L'amour vainqueur et la vie opportune
Ils n'ont pas l'air de croire à leur bonheur
Et leur chanson se mêle au clair de lune,
Au calme clair de lune triste et beau,
Qui fait rêver les oiseaux dans les arbres
Et sangloter d'extase les jets d'eau,
Les grands jets d'eau sveltes parmi les marbres.
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