quarta-feira, 25 de setembro de 2013

a vastidão de todas as almas em três letras banais


Os ingleses e americanos ganham mais uma vez. Os anglófonos desse mundo, ignorantes em termos de ‘saudade’ por uma tecnicidade linguísica – carecem de equivalente para seus idiomas , são donos do awe, e nos superam com facilidade em termos de palavras intraduzíveis. Awe é o pior de nossos medos e também a dádiva mais prodigiosa; a  sensação de ruína e a glória; a satisfação aparentemente eterna que brinca com nossa noção de tempo por seu êxtase constante ou delírio assustador. Três letras bastaram para admiração, espanto, rapto dos sentidos, estupefação e enlevo, como se toda a dualidade inevitável da vida coubesse num substantivo banal.
E nós aqui, afoitos com dicionários analógicos da língua portuguesa, só para ver se aparece algum equivalente.
***
Fiquei vendo na TV outro dia uma longa reportagem sobre a Cracolândia em São Paulo e seu equivalente no Rio de Janeiro. O repórter grisalho e sua colega de ascendência japonesa aventuravam-se pelas ruas ocupadas por maltrapilhos agressivos e desesperados, delirando nas suas pedras de crack e deixando a química da droga aliviar o martírio de suas mentes. Um sonho dantesco de indivíduos amaldiçoados pelo terror da condição social e tantos outros que cairam ali por motivos não explicadas pelos jornalistas.
Senhor deus dos desgraçados! Vê só lá pelas tantas o repórter exaurir sua fonte nos focos principais da reportagem para buscar viciados fora da cracolândia. Havia um casal de drogados jogados sob a ponte que fitava o nada e mexia a cabeça de modo meio demente. O homem está com a cara borrada para poupar sua identidade já há tanto tempo perdida, mas a mulher não. Ela é abordada pelo homem grisalho e bem vestido que conduz a entrevista.
Ele se aproxima com cautela. Ela está desconfortável pela sua presença e da câmera, e tenta fingir que sua situação é perfeitamente normal. Ao ser perguntada por que está triste naquele dia, ela desconversa. “Triste, eu? Por quê?”, mas há insistência. Ela rebate as inquisições com comentários sarcásticos, mas começa a lacrimejar. “Porque você chora se está feliz?”, questiona o repórter. “Sinto falta”, e treme débil com suas mãos magras e os poucos dentes na boca, e não consegue completar o que ia dizer. “Sinto falta da minha vida, sabe”, e chora à beça. “Meus filhos, a terra de onde venho—”, mas nisso intervém o seu companheiro, que se opõe violentamente à presença da equipe de reportagem ali. “Vão ficar falando merda aí, sai fora, meo.”
Gaiato, o repórter leva embora a mochila, e continua sua missão ao buscar o cara que foi assaltado pelos dois e teve seus bens subtraídos. Essa parte, no entanto, é extra: o awe terrível de uma habitante exilada da Cracolândia fora destilado com sucesso. “Um drama do Brasil, questão de saúde pública”, diz o estudante dono da mochila. Enquanto isso, os telespectadores afoitos não conseguem aceitar bem o que viram e se contorcem na cadeira de casa. Questão de saúde pública, sim, pode ser —  mas não sabem nem descrever o que os acertou. Falassêmos inglês, estariam poupando palavras e sorveriam desgostosos o awe que se transmitia pela televisão.
Após os comerciais, volta ao último bloco a reportagem. A equipe de jornalistas se divide em dois para reencontrar viciados já entrevistados em edições antigas, de vários anos atrás, do mesmo programa: a moça nipônica, no Rio de Janeiro, e o sujeito grisalho, em São Paulo. Ela vai atrás de uma criança, que entrou nessa porque a família toda já usava o crack, e ele vai buscar uma mulher que havia reconquistado a sobriedade no transcorrer da última reportagem.
Essa parte começa com uma retrospectiva: a mulher, morando em uma favela junto com o pai e o resto da família, descrita como boa gente, cercada de pessoas boas e boas intenções. Em algum momento ela começa a usar a droga, passa a morar na rua, e se perde na vida. Vários takes do pai procurando por ela passam em seguida, intercalados com a visão dele construindo um sobradinho só para ela. Aí ele consegue recuperá-la. A usuária está acabada, mas foi reencontrada e volta assim a dormir em casa. A moça, agora de aparência tão lamentável, vai ao centro de recuperação. Cortam para imagens de meses  depois: em uma igreja,  morrendo afogada no seu próprio mar de fé, ela chora intensamente. O pai também chora, e todos se emocionam. Dão a ele um microfone: “dá vontade de chorar, de rir, eu não sei! Eu nunca estive tão feliz, não consigo nem entender isso aí. Só pode ser coisa de Deus!”
A audiência respira feliz com o pólo oposto daquela sensação de putridão da droga que vinha sendo descrito até então. Finda a retrospectiva, os jornalistas batem à porta do pai da moça: em que pé ficou aquela história? Por onde ela anda? O pai abre a porta já meio desesperançoso e cansado. Ah, pois é. Cansei. Tanto tempo e esforço para salvar minha filha… Voltou pra Cracolândia. (Ele lacrimeja.) Não sei mais o que fazer.
A equipe sai na mesma busca pela moça, e a encontram. O que aconteceu?, eles querem saber. Como é que você acabou voltando para a droga? Não tinha se recuperado? Ela não está afim de dar explicações. Diz que é doente, é viciada, tem um problema — e é isso aí. Recaiu, voltou, ta aí de novo.
Em uma última visita a esse pai que gostaria de ter qualquer motivo para não dar outra entrevista sobre a filha viciada, o repórter explica que a viu na Cracolândia na sexta feira anterior. Ele meio que repete o discurso, como quem diz que não adianta fazer todo esse auê — essa alma aí não vai ser salva.
Último quadro do dia: “falamos com seu pai”, dizem os repórteres para chamar a atenção. “E ele sente a sua falta. Disse que vai deixar um espacinho lá na casa dele para você, e você pode sempre voltar quando quiser…” Ela segura algumas pedras na mão, e os fita longamente. “Ah é?”, pergunta meio desolada. “Sim”, diz o repórter. “Pô, tamo junto”, ela conclui, longe da salvação do ano anterior e longe, na verdade, de qualquer salvação. Ela vai embora, caminhando de volta em direção a mais um grupo grande de pessoas como ela.
Termina o programa. É difícil de dormir com a memória da usuária de crack que chora diante do repórter. Há algum tipo de vastidão nessas pessoas, mas do mesmo tipo de vastidão que tem um abismo profundo. Há um medo intenso da profundidade, e a morte como problema e também como solução. E é o awe de que falo na sua polaridade confusa e pessimista. (“Maybe you should never ever watch the 10 o’clock news”!)
***
Mantenho-me ainda impressionado pela versatilidade bizarra da palavra. Logo “awe”, de som tão banal. Saudade soa muito melhor, sem dúvida, mas está presa a um aspecto só de um sentimento tão comum, nesse lado triste da ausência alheia. E o  ”awe” transita de um lado para o outro – ora ‘desolação’, ora ‘fastio da alma’.
Eis a forma com que tornei a dormir depois, aliás. A vastidão percebida pelos nossos sentidos incrédulos deixa cicatrizes profundas na memória não só por conceber a difícil existência, por exemplo, da Cracolândia. Ela — e o ‘awe‘, por tabela —  também está presente nos melhores momentos de beleza sublime, graça e em eventuais provas de paixão, quando não se sabe a diferença entre a dança e a dançarina.
A metáfora é pertinente, por sinal. Sempre lembro disso quando me dou conta que estou dançando em algum lugar. Esse é o outro exemplo, o mais leve: nunca soube me livrar desse temor engraçado que acompanha o momento antes de se soltar junto com a música, ainda que lembre com alegria anormal das vezes em que isso deu certo. É meio idiota também, é verdade. Mas o súbito receio de esquecer como se move ao som de uma canção qualquer é tenaz e persistente.
Explico, e rogo a presença da morena de voz cantada. Morena de voz cantada, perfume de flores, de intenso vicejo e coração (secretamente) selvagem, de rosto bonito e pés dançantes. Aí, aliás, é que está meu ponto: tenho certeza que é sublime a fluidez com que minha morena encarna os compassos,  brincando com o corpo e me tomando em transe – e fazendo que não sabe disso, mas sei que sabe. Céus, como se compete com isso? Como dançar se, no deslumbre meio passional, até esqueço como se faz para andar?
E o awe, devolvendo o mérito para meus camaradas estadounidenses ou britânicos, resumindo todo esse micro-drama e apressando em muito os tropeços desse meu coração aflito, canta sua glória. Meu caro, diz ele, é uma questão de aceitar e desistir, ou render-se à noite que não te dá outra opção, e conviver pacificamente com sua felicidade.
As noites em que sou bem sucedido encerram-se em cenários de pistas de dança progressivamente mais vazias, e a morena me sorri. E o âmago da minha existência, assim com todo o seu exagero inerente, agradece em igual tom, sorridente e satisfeito. Não por dançar ou deixar de dançar per se, mas por ter testemunhado bossas e poemas de Vinicius tomarem vida na minha frente, justificando o Werther do Goethe, e me fazendo recorrer a todo o tipo de referência, mais ou menos bossal, para tentar entender e explicar como estou absolutamente tomado por essa sensação meio insana de paixão. Algo meio difícil de descrever, que não cabe nas minhas pupilas dilatadas ou na súbita vastidão de uma alma cética que, de repente, esquece da Cracolândia ou desses temas tão difíceis. Ali, atordoado, buscando palavras e você — “oi, babe!”, tão simples e sensacional. É óbvio que vou acabar fazendo gracejo.
"No que você está pensando?", você vai me perguntar. Eu teria que entrar nesse assunto dessa forma, assim longamente, mas não sei se você precisa ouvir tudo isso. Fosse eu inglês ou americano (ou mesmo canadense ou quem sabe australiano), resumiria inclinando a cabeça de leve e dizendo, só depois de uns dois segundos: “awe”. 
***
Pensando bem, enfim vou concluir que a dualidade extensa e maluca dessa história toda é o seu próprio ponto positivo. Assim como não é necessariamente compatível viver a vida e, ao mesmo tempo, entendê-la, ainda que a dança e dançarina não se diferenciem entre si. A chuva, me disseram, soa como aplausos se você fechar os olhos, aliás. Mas, no fundo, são a mesma coisa.
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Eu nem sempre sei como dizer o que quero dizer, e frequentemente demoro muito para fazê-lo. Mas digo mesmo assim.
http://mundoderascunhos.blogspot.com.br/2013/06/far-too-many-postage-stamps-pt1.html

terça-feira, 16 de julho de 2013

Vidas inventadas

ou: Os fantasmas de Darwin e o paradoxo da escolha


“Mate!” — exclama o Darwin, meu vizinho neozelandês desses últimos meses, deixando-se cair na cama onde estava sentado.

Estamos próximos das despedidas que nos separarão por anos, tomando cerveja berlinense no pequeno apartamento dele e jogando conversa fora com o húngaro que mora na porta ao lado. Um dia Darwin me disse que tinha um segredo terrível, o qual nos contaria oportunamente quando estivéssemos na residência; depois de muita insistência, ele concordou que essa seria a ocasião. Insistindo mais um pouco, ouço-o me retrucar outro “mate!” hesitante e procurar no teto branco do quarto por onde começar.

Chegar ao ponto de convencê-lo a me contar alguma coisa, no entanto, levou algum tempo. Ironicamente, apesar de Darwin ter me despertado uma curiosidade incansável acerca da sua vida, ele é um cara extremamente desinteressante. Se tivesse que resumi-lo, talvez dissesse que é um tanto preguiçoso e cheio de opiniões bem ordinárias, e seu notável hábito de nunca ir à aula nenhuma incomodava meu senso de obrigação cotidiano. E aí, por trás do sorriso que ele me dava quando eu aparecia vez ou outra para visitá-lo na porta ao lado, sempre achei que algo ali havia de ser contado em histórias meio alcoolizadas que eu não esqueceria.

A primeira vez que entrei no pequeno apartamento habitado por ele, aliás, rendeu-me quase um choque: tudo o que ele possuía e trouxera para cá estava misturado e jogado pelos cantos, sobre o chão do quarto que era impressionantemente imundo. Embora seja um cara bastante sozinho, era como se lá convivesse mais um pequeno caos de pessoas alheias ao asseio e organização. Só mais tarde fui entender que era exatamente esse o motivo da bagunça e da aura de mistério que ele dava ao seu grande segredo: Darwin realmente morava com mais pessoas. Isto é, todos os fantasmas de suas outras vidas inventadas.

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terça-feira, 25 de junho de 2013

"I'm thinking about you", by Mike Taylor

From "Brave New Voices", as seen on YouTube:

Yesterday you asked me
if I think about you during the day,
in class or on the bus.
Do I ever wonder who you’re with,
or what you’re doing,
or what you’re thinking about?
Well, I’m in math class right now...
and I’m thinking about you like crazy!

Like,
hands think about holding,
and arms think about folding.
and minds think about not thinking,
but knowing.

I’m thinking about you
like feet think about socks
and socks think about shoes.

I’m thinking about you
like rock and metal think about screaming
like blues think about rhythm,
like hip-hop thinks about… hoes?
Like gardeners think about hose,

I’m thinking about you
like tops think about spinning
like rocks think about sitting
and cops think about arresting people.

I’m thinking about you
like people think about the clock
five minutes before their shift ends.

I’m thinking about you
like A thinks about being with B,
like B thinks about C and D,
like E, F and G,
like H… I and J.

I’m thinking about you
like white and black think about
making grey in a paint pallet,
like night thinks about making day in the morning
like rain clouds think about pouring,

I’m thinking about you
like math analysis thinks about being boring
(Because, seriously,
any class this boring
has had to take some serious thought.)

I’m thinking about you
like the last problem in this math quiz.

I’m thinking about you
like bugs think about grass,
like thugs think about… grass.

like students think about class,
like, ladies! think about class,
like lower mid class people think about flying first class to places
they only think about, like New Zealand or France.

I’m thinking about you
like pilots think about the horizon,
like the clouds think about the wind
and the wind thinks about trees,
like teenage boys think about the birds and the bees,
and the bees think about serving the queen, and making honey,
and honey, I’m thinking about you like crazy!

Like,
like mattresses think about springs
and winter thinks about spring,
who thinks about summer
and it doesn’t matter what season it its!
When I’m thinking about you it’s always sunny,
like rainbows and bunnies,
and I’m thinking about you
like rich people think about making money,
and broke people think about making money,
and when I’m thinking about you,
the world makes sense.

Let me go change.
I’m thinking about you when I get dressed
because, before I step on stage,
when I look at myself in the mirror
you’re the only one
that I’m trying to impress.

I’m thinking about you
like boats think about floating
and paddles think about rowing
and poets think about flowing
I’m thinking about you
like bankers think about loaning
like renters think about owning
and stoners think about…
throwing rocks!

I’m thinking about you
like keyboards think about keys,
and keys think about unlocking locks,
like goldilocks still thinks about bears
like Bears thinks about being cool.

I’m thinking about you
like refrigerators think about being cool
and microwaves think about being hot,
like kids think about breaking rules,
like targets think about getting shot.

I’m in math class right now,
not trying to get you off my mind.
Just simply off the sine, cosine
and tangent lines I’m graphing.
I’m thinking about you
like numbers think about adding,

like cripples think about standing.
I’m thinking about standing up
and walking out.

I’ll say I have to go to the bathroom or something
and I’m gonna find out exactly who you’re with,
and what you’re doing and what you’re thinking about!
but,

I think you’re in math class right now, too.
So I’ll text you:
'I’M. THINKING. ABOUT. YOU.'

Send!




quarta-feira, 12 de junho de 2013

"Sonder", by John Koenig

From the "Dictionary of Obscure Sorrows", as seen here: link.

"You were the main character, the protagonist, the star at the center of your own unfolding story. You are surrounded by your supporting cast; friends and family hanging in your immediate orbit. Scattered a little further out, a network of acquaintances drifts in and out of contact over the years. They’re in the background, fainting out of focus. 

Or the extras. The random passers-by, each living a life as vivid and complex as your own. They carry on invisibly around you, wearing the accumulated weight of their own ambitions, friends, routines, mistakes, worries, triumphs and inherited craziness. When your life moves on to the next scene, there’s flickers in place, wrapped in a cloud of backstories, inside jokes, characters struggling together with countless other stories you’ll never be able to see. That you never know it exists. In which you might appear only once. As an extra sipping coffee in the background. As a blur of traffic passing on the highway. As a lighted window at dusk."




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'Original definition':




domingo, 2 de junho de 2013

Sonder (elaborate anthills and passerby sadness)


1. Darwin

“Let me tell you this story about how...” é como Darwin, meu vizinho neozelandês, costuma começar a me contar alguma coisa.  Tomo o trem com ele nas manhãs de segunda-feira, e ele normalmente mata o tempo jogando conversa fora. Isto é, quando encontramos assentos livres no S-Bahn.

Não sei bem a razão disto, mas me agrada muito esse seu jeito de introduzir uma nova história. Mesmo porque Darwin não é exatamente um cara carismático ou extremamente interessante no alto de seu 1m63 de altura, e ainda assim acaba prendendo a minha atenção sempre que usa essa frase. “Let me tell you this story”, inclinado para frente, olhos para cima e dedo indicador pontuando a linha de pensamento.

Dessa vez é sobre o Freddie, que também atende por "Alfred", Alfie”, “Alf”, ‘‘Freddie’ ou “Freddo”. Freddie é um de seus amigos australianos mais constantes nas histórias na nossa comutação diária, provavelmente em função de ser a única pessoa conhecida por Darwin que já tinha feito um intercâmbio. E Fred, por um acaso, morava em Berlin.

Ah, o ponto não é esse. Acontece que conversávamos sobre a pequena crowd que se acumulou no trem, entre a qual vejo um sujeito de Florianópolis que também mora na nossa residência. Esse cara não tem nada de especial e poderia ser mais um entre os 400.000 florianopolitanos habitando atualmente a ilha, mas lembro dele porque o vi cruzar por mim quando estava indo à estação central de Berlin nas últimas vezes que fui viajar. Nada para chamar a atenção de ninguém, mas o jovem lá apareceu duas vezes na mesma parada de trem em que eu estava, falando muito alto em português com algum gaúcho — às 6h30.

“E daí?”, me pergunta o Darwin.

“E daí que esse é o padrão de Berlin, não? A gente mora aqui há uns dois meses e consegue ainda contar em uma mão o número de vezes que chegamos em casa depois do sol nascer.”

Minha preocupação em competir com a alvorada nos vários pós-festa dessa cidade incansável lhe estranha.

“Não entendo.”

“Sei lá,” digo tentando ganhar tempo para formular melhor o que quero dizer. “Tudo bem que temos gastado bastante tempo na estrada ultimamente, mas talvez convenha sair mais para explorar a cidade. De repente conhecer mais pessoas... além de todos os cento e vinte intercambistas.”

Ele me olha e abre um sorriso meio difícil de traduzir. Acho que em inglês eles diriam “smirk” ou alguma coisa assim. Só sei que Darwin entendeu meu ponto, e ‘let me tell—

“Let me tell you this story about Freddie,” — logo imaginei — “and his roommate.”

Ainda em Lichtenberg, o trem tem ainda pelo menos 40 minutos pela frente. Fico feliz de ter Darwin para matar o tempo, ainda que sua voz seja um pouco alta demais e atraia sempre atenção de alguns Asis carecas esperando a deixa de uma briga.

Ele está falando sobre Freddie e seu colega de apartamento, certo. Freddie (que, por sinal, era australiano) morou em 2012 com um berlinense perto de Prenzlauer Berg, um bairro cheio de bares e clubs, bem famoso por ser ativo para gente da nossa idade. E esse cara dividindo um apartamento com o australiano era “drug dealer” até 2011 ou por aí, o que lhe rendia  um acesso a drogas muito mais fácil que para qualquer um. Por isso, a referência que Darwin tinha sobre o que havia de interessante na capital alemã inevitavelmente cercava o tema na ótica de alguém que estava frequentemente high.

“E aí que eu perguntei a ele o que eu poderia fazer por aqui, porque estava começando a ficar sem ideias. E sei do que você está falando: acho mesmo que a gente poderia estar usando melhor nosso tempo.” Ele pausa brevemente, sorri de novo (‘smirk’ seria a palavra aqui mais uma vez) e faz um gesto sarcástico com as mãos: “Berlin — the place to be!

“A-ha”, digo. “E qual foi a sugestão?”

“Bom, não sou bem disso, você sabe. Não fumo e tal.” E sei mesmo, Darwin é do tipo de cara que fica ‘bêbado’ com um par de shots de tequila e uma Beck’s. (Eu saberia, porque contei as bebidas na última ida ao bar perto da Ostkreuz.) E, de fato, não conseguia imaginar muito bem como ele se disporia a tentar algo mais pesado, como viajar no ácido.

Mas a história do Freddie continuava, porque as sugestões eram até bastante interessantes. Disse-me Darwin que, em dado ponto do ano do seu amigo em Berlin, ele havia desenvolvido o hábito de ir fumar alguma coisa forte, ir às estações de trem e improvisar músicas sobre os transeuntes. Talvez os acordes fossem sempre os mesmos, mas as pessoas, como transitórios personagens das músicas espontâneas de Freddie, formavam em sua cabeça versos tão permanentes quanto a durava a presença dessas pessoas no seu campo de visão. Não o culpo: decerto é mesmo difícil de memorizar qualquer composição enquanto totalmente chapado.

A ideia me divertiu, de qualquer forma. Pensei nessa excelência criativa que passara despercebida, que talvez fosse de amplo reconhecimento se chegasse ao crivo de alguma multidão já preparada. Ou se ele ao menos se lembrasse das rimas e sacadas mais inusitadas.

Além disso, assim que Darwin terminou essa parte do que dizia, senti um torpor causado pela ideia que veio depois. Freddie provavelmente não se deu conta disto, mas cada transeunte aleatório (que no momento apenas ilustraram suas horas sob o efeito da maconha, zumbindo como centelha de inspiração junkie) estava, na verdade, vivendo uma vida complexa e pulsante como a dele — igualmente populada com ambições, amigos, rotinas, preocupações e alguma loucura herdada. Praticamente histórias épicas que continuaram invisivelmente ao seu redor, como um formigueiro alastrando-se profundamente na terra com passagens elaboradas para milhares de outras vidas que Freddie sequer teria tempo de conhecer antes de fazer seu centésimo aniversário. E, afinal de contas, Freddie, ali com seu violão, apareceria apenas na vida daquelas pessoas essa única vez, mesmo que se fizesse presente de forma tão inusitada, quase como um repentista europeu.

Olhando ao meu redor, com todos os passageiros daquele trem olhando algum livro ou a paisagem pela janela, senti o mesmo pensamento ressonar no nosso momento entre uma parte e outra da história contada por Darwin. Reduzidos à nossa inércia, éramos também nada mais que frame de um segundo no campo de visão das outras pessoas. Um pequeno gole de café no segundo plano, um borrão de tráfego passando rápido pela rodovia, uma janela acesa na alvorada, algum cenário sonolento ao final do dia. Ou algum cara de Floripa voltando para casa de manhã.

“Anyway”, retomou Darwin, “there was also Freddo’s ‘girlfriend’ during his exchange, Lisa from Austria.” Ah, sim. A Lisa. “Ela curtia bastante tomar MDMA, então eles faziam isso praticamente todo final de semana.”

Eu o fitava, absorto na história.

“E soube que ela tinha um amigo que estava morando na Finlândia,” — por Deus, mais um personagem! — “que acabava se perdendo nas drogas alucinógenas e fazia algumas coisas sem noção.” (Ele deve ter dito “some crazy shit”. Essa era outra expressão que Darwin gostava de usar).

“Tipo?”

“Tipo quando ele foi a um club em Berlin sem espelhos, janelas ou mais do que meia iluminação. Tinha a ver com música eletrônica, mas só lembro da história pela metade. Aí parece que ele se perdeu no lugar porque o efeito do cogumelo que ele tinha tomado estava muito forte, e foi parar numa sala totalmente escura onde as pessoas transavam e tal. Diz ele que foi o sexo mais mecânico da sua vida.”

“Berlin tem de tudo, afinal.”

“Pois é.”

E aí rimos, imaginando o que provavelmente deveria ser o ‘sexo mais mecânico da minha vida’ na concepção de alguém alucinando com cogumelos. O trem atingiu Alexanderplatz, e, como de habitual nesse ponto, dezenas de pessoas desembarcaram, dando lugar a mais dezenas de outras que embarcaram. Entre elas, Lena.

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2. Lena

Lena tomou o lugar ao lado de Darwin. Ela usava um lenço vermelho no pescoço e ouvia música com fones de ouvidos. Loira, não muito alta, bem branca, olhos azuis, e definitivamente alemã. Talvez não de Berlin, no entanto. Tinha também olheiras e aparentava estar cansada. 

E estava mesmo, pelo que tinha se passado com ela: na madrugada do domingo que antecedera aquela segunda-feira, Lena praticamente não tinha dormido direito por ter ido a Potsdam — cidade nos arredores de Berlin que se pode atingir simplesmente com a S7, uma das linhas principais do trem de superfície — para uma festa com o Americano Finlandês de Berlin. Esse mesmo cara eu havia conhecido aqui mesmo em 2011 no Tacheles, em alguma festa meio asozial próxima ao centro da cidade. Mas, como Freddie experimentara tocando violão no metrô, essa era apenas uma das coincidências oferecidas pelo cruzamento de veredas secretas a interligar a vida das pessoas. (A imagem dos túneis em um formigueiro permaneceria em minha mente bem vívida.)

Aparentemente, embora eu jamais fosse tomar conhecimento disto, nos dois anos que transcorreram desde meu rendez-vous com o Americano — nunca fiquei sabendo nem seu nome, tampouco tive oportunidade de perguntar a Lena —, seu espírito de Dean Moriarty abandonou a Finlândia e achou refúgio aqui perto da capital alemã. Faz todo o sentido, pensando bem. Consigo imaginar bem as histórias de On the Road recontadas por ele em algum prédio mais decadente, construído ainda durante a Guerra Fria.

Eu divago. Falávamos de Lena, que fora à Potsdam por convite do Americano. Desde que se mudara para a Alemanha, ele adquirira o hábito de organizar nessa parte do ano festas com praticamente todas as pessoas que conhecia na casa de seu melhor amigo alemão, Marcus. (Marcus também atende por ‘Garfield’ — longa história, não pergunte —, então passemos a tratá-lo por seu apelido). Na ocasião dessa última festa, além de Lena também compareceram Mareike e Simon, que o Americano havia conhecido quando ainda morava em alguma cidade perto de Helsinki.

Pelo que já teria suficiente para criar olheiras em Lena, a houseparty transcorreu atendendo às expectativas. As pessoas lotaram a casa do Garfield, havia álcool à beça, e música boa alternava-se como música ruim. Um pessoal da América Latina divertia-se empolgado colocando reggaetón a repetir. E então, às três da manhã, enquanto mais várias pessoas tomavam caipirinhas (ou ‘Keipis’, como eles diriam) na cozinha de Garfield, algo repentinamente causou um estrondo no corredor ao lado.

Lena, que se encontrava próxima da porta, pode ter uma boa visão do que se passava: Simon, um dos alemães que o Americano trouxera da Finlândia, estranhamente estava a vestir suas calças com uma cara muitíssimo aborrecida e meio desenganada. O estrondo se repetiu: Mareike agora fora jogada ao chão, junto com o resto de suas roupa, que ela imediatamente se pôs a vestir, extremamente aflita.

Antes que se pudesse formular alguma hipótese sobre o ponto inicial, mais coisas foram arremessadas na direção dos dois, dentre as quais poderia destacar um ferro de passar roupa. E então, logicamente, Garfield irrompeu enfurecido pela porta do seu quarto com um fantástico repertório de ofensas em alemão. Eu teria tomado nota de todas as variações de “Arsch”, “Scheiße” e “ficken” que ele gritava irado.

Ach so”, pensou consigo Lena. “Os dois estavam usando o cama do Garfield.”

Mas fica pior: Garfield já conhecia Mareike, ao ponto de eles próprios terem se encontrado na mesma situação em ocasiões e houseparties anteriores. E aí, veja, ela teve a ousadia de usar a cama dele com outro cara. Durante a festa. Logo o Garfield, que tinha uma profissão tão estressante, tendo que estar já indo viajar na manhã seguinte para uma jornada de 12 horas. Logo o Garfield, cuja ex-namorada havia há pouco tempo terminado de infernizar-lhe a vida com todo o tipo de bizarrice, envolvendo em certo ponto até uma gravidez falsa e ameaças de suicídio. (Lena surpreendia-se como esse tipo de coisa realmente acontece.) Não suficente, Mareike quebrara de alguma forma o retrato que Garfield havia deixado no seu quarto, no qual aparece (ou aparecia) abraçado com a tal ex-namorada.

O resultado disso tudo foi, é claro, que a houseparty teve que parar ali mesmo, porque Garfield estava colérico, tentando chegar em Simon a todo o custo para fazer sabe-se lá o que com ele. Tudo o que se podia ouvir era o alvoroço do Americano e um segundo amigo tentando contê-lo, de modo que ele não chegasse efetivamente a agredir o Simon, já que isso renderia uma visita ao distrito policial e naturalmente poria em cheque sua carreira. A-há.

Tão logo Mareike e Simon deixaram o lugar, o Americano passou a correr de um lado para o outro tentando consertar o que podia. A maior parte dos seus amigos viera sabendo que dormiria na sala de Garfield assim que a festa acabasse, mas essa possibilidade não havia mais como.

Nesse ínterim, enquanto todos os outros se agitavam preocupadas, Lena ficara parada, incrédula com o nível da situação explodindo ao seu redor. À maneira do cenário que se fizera, ela era agora a janela acesa no segundo plano do crepúsculo. Como uma pedestre de passagem que não está ligada de modo algum com o contexto. E nisso ela se deu conta que não tinha mais aonde ir por um bom tempo, porque o próximo S7 de volta para casa só viria em algumas horas.  

De volta ao nosso trem matinal, obviamente não pude deduzir metade dessas informações apenas ao olhá-la sentada diante do Darwin. Só pude imaginar pelo seu aspecto que o final de semana havia lhe cansado muito. Paramos em Hackescher Markt, logo depois de Alexanderplatz, e mais pessoas ocuparam o trem.

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3. Herr Reuß e Gabriel H.

Uma boa parte do vagão é disposta de modo que as pessoas se agrupem sentadas em quatro assentos em duas fileiras, voltadas umas para as outras. No espaço que se esvaziara se sentou um senhor alemão, Herr Reuß. Nessa configuração final, encontravam-se ali Darwin, Lena, Herr Reuß e eu. Fitamo-nos, ao que nosso novo companheiro de viagem nos encarou do alto dos seus óculos retangulares sem aro. Também nada disse, voltando seu olhar severo à janela.

É difícil mensurar o peso de um olhar para retinas tão vividas e cansadas. Para Herr Reuß, a pequena fobia de transitoriedade que se manifestava na falta de valor que temos nas milhares de vidas a cruzar nosso caminho todos os dias — como agora — não vinha à tona com a presença de Darwin, por exemplo. Ele já vira australianos o suficiente em sua vida. Ele já vira muita coisa o suficiente, dado sua história de baby-boomer, Ossie — isto é, nascido no lado oriental da Alemanha no pós-guerra — e desacreditado aposentado.

Tome Friedrichstraße, por exemplo. Era a estação que vinha logo depois do lugar onde ele embarcara. Na sua época era conhecida como “Palácio das Lágrimas”, por ter sido cena de desgostosas despedidas quando as pessoas do oeste não podiam ir ao outro lado, ainda que o contrário fosse permitido em rápidas visitas. A visão dos tijolos marrons do lado de fora o remetia sempre aos anos oitenta, quando Herr Reuß vestia seu sobretudo de couro, sem cabelos na sua cabeça pálida, e passeava de coturnos com seu pastor-alemão, Ralfie.

Na mesma lógica do Alfie — “Freddie”, “Freddo”, “Alf” —, que sentava na estação de trem para entreter o ouvido de quem estava a passar por ali com versos sobre a casualidade, Herr Reuß e Ralfie se entretinham sendo um borrão dos pedestres próximos da Friedrichstraße. Mas o faziam com uma sádica intenção, tornando-se menos janela ao fundo do crepúsculo e mais um susto pela rápida visão um Doppelgänger, algum animal selvagem ou de um hooligan agressivo que espera pela menor deixa para dar utilidade a um soco-inglês. Isso porque Reuß efetivamente dava com frequência uso ao seu soco-inglês, o que não precisava ser explicado com todas as palavras a quem lá se encontrasse.

Naturalmente, não há que se sintetizar a vida de Herr Reuß na sua fase mais underground. Suas várias facetas sempre foram tantas quanto os muitos guindastes e gruas de construção espalhadas por Berlin. Ele já era grande expert do ar da madrugada, sob estrelas ofuscadas por holofotes e escondidas pelos guindastes, impregnado pelo cheiro de bebida deixa o ar da cidade cheirando à festa. De um jeito ou de outro, sua feição taciturna não dá deixas a icebreakers.

Depois de algum tempo atingimos a Hauptbahnhof, e Lena desembarca. Gabriel entra e toma seu lugar, cumprimentando-nos alegremente. Finalmente teremos alguma outra pessoa com quem conversar. Darwin tenta dizê-lo, em embolado sotaque neozelandês, que gostaria de saber as horas. Ele responde com alguma piadinha próxima a “cinco para daqui a pouco”, mas o alemão de Darwin não chega a esse ponto. Gabriel continua rindo e diz que são 9h43.

“De onde você é?”, pergunta ele, alegre.

Darwin apresenta a si e a mim, e começamos a trocar uma ideia com ele. Herr Preuß se ajeita meio desconfortável, ainda sem tirar o olhar da janela. Depois do papinho sobre de onde vínhamos, o que estávamos fazendo em Berlin, quantos anos tínhamos e uma descrição mais longa sobre a cidade do Darwin, repetimos a pergunta.

“Ah,” diz ele como quem busca no ar por onde começar. “Moro em Mecklenburg-Vorpommern, na verdade. É um estado no norte, conhecem?” Conheço, e fico feliz de ter tido aquele mapa enorme pendurado na parede durante as aulas de alemão nos anos anteriores.

“Isso! Pois então. E sou da Bavária, na verdade. Mas vim visitar a minha vó, já que não tem mais ninguéme aqui por ela, e ver se consigo aproveitar para assistir a final da Bundesliga no Olympiastadion.”

“Torcedor do Bayern?”

“Há, lógico!”

Darwin é bom nisso, mas também já conheço bem essa, considerando o país de onde venho. ‘Jogando conversa fora para iniciantes, lição 1: Futebol”. Algum deles comenta alguma coisa sobre a escalação, outro acrescenta uma crítica a um jogador, culpando o técnico, e isso dura alguns momentos. Aceno com a cabeça, de olho no Herr Reuß, que se agrada com as críticas ao Bayern. Ao menos isso lhe atrai levemente a atenção.

A introdução da conversa morre por ali. Não lembro bem o porquê disto, mas encontro um gancho que não faz sentido no que Gabriel diz e questiono porque ele está aqui na cidade.
“Bom, tem mesmo a minha vó e a Bundesliga. Mas vim ver meu filho também.” Estou surpreso; só com 23 anos ele já tem gerou seu pequeno Hoffmann. “E a mãe dele está aqui. Aí preciso usar minha chance de ver o kleinen Mann. Não vejo muito meu filho, sabe.”

Rápidas contemplações ao fundo da alma alheia em incursões espontâneas a intimidade de um estranho simpático, como café instantâneo sem açúcar. Pergunto por mais detalhes, e Darwin está pensando em alguma outra coisa. Gabriel aponta para a janela, em algum ponto longe:

“Berlin não tem montanhas. Sempre falo ao kleinen Mann sobre como são grandes os vales e montes da Baviera. É bem engraçado quando estamos com o carro na Autobahn, e ele se entusiasma com qualquer morrinho que vai aparecendo. ‘São as montanhas?’, ele me pergunta. E eu digo ‘calma, vais ver só quando chegarmos nas montanhas de Oberbayern’.” E suspira.

Berlin, de fato, praticamente não tem nenhuma elevação como há no sul. No máximo há o Teufelsberg, “morro do diabo”, construído com escombros e restos de prédios trazidos abaixo pela Segunda Guerra Mundial. E a noção de que o único morro — ou um dos poucos morros — que o pequeno Hoffmann teria para ver aqui fora feito como cicatrizes de entulhos e restos de bombas era uma lembrança meio tétrica da cidade onde estávamos. A história dele dispersou-se no ar, enquanto nossos pensamentos iam se fazendo presentes em algum outro lugar. 

Gabriel fora buscar na memória a voz do filho, os argumentos aos ex-sogros que não falavam alemão, e o melhor caminho às montanhas sul. Herr Reuß alisava a careca, preocupado com a hora. Darwin lembrava os uniformes de soldados abatidos no museu do abrigo anti-bomba que havíamos visto algumas semanas antes, com o capacete de tamanho infantil danificado com um buraco de bala na nuca. E eu assistia como ficávamos assustadoramente fora de contexto, diante dessas histórias contadas por cada um que não faziam muito nexo entre si.

Éramos praticamente a biblioteca infinita descrita por Borges, populando a Terra com infinitas possibilidades que não necessariamente acrescentam algo. Achei-nos similares aos livros que, quase como cópias, diferiam uns dos outros por apenas meia dúzia de caracteres. Mas os contrastes aqui se baseavam nos nossos próprios rostos, ao passo que as narrativas permaneciam, de certa maneira, as mesmas. 

Quero dizer, estavam lá de qualquer forma o pai divorciado, o imigrante, o herdeiro do país pós-guerra, o Dean Moriarty repensado, e o fã de Kafka que não vê coerência nessa miríade de vidas esbarrando-se umas nas outras na casualidade das manhãs de quinta-feira. Suspeitei que essa conversa já fora tida anteriormente por outras pessoas em algum outro trem, sei lá onde.

Senti muita vontade de começar a explicar ao Darwin o que me passava pela cabeça, mas acho que não saberia formular a ideia. Queria principalmente dizê-lo que éramos uma fração de nada na vida de algum estranho que parara para conversar conosco, e nosso papel de figurante naquela viagem de trem que Lena, Gabriel e Herr Preuß fizeram nos tornava absolutamente secundário na ótica deles.

“Darwin, você não percebe?!”, eu teria dito se tivesse tomado café demais. “Provavelmente somos apenas relevantes no contexto das nossas próprias vidas, ou no máximo de uma meia-dúzia delas! De resto somos apenas a maldita janela acesa vista de longe!”, e aí eu o seguraria pelos ombros e chacoalharia, querendo dizer, naturalmente, que contamos histórias para gravar nossas iniciais no cimento molhado deste momento. 

Mas em um mar de iniciais gravadas no cimento, somos apenas o detalhe pequeno de uma figura muito maior. Nossa individualidade não tem muito propósito se pensarmos nela como dissolvida no grande caldeirão que é a coletividade. Ou talvez nossas histórias componham algum mosaico que não conseguimos contemplar olhando por trás das nossas próprias vidas. Ou alguma coisa assim. Nisso, aproximávamo—nos de Zoologischer Garten, onde iríamos desembarcar, e começamos a fazer menção de sair.

“Ah, vocês saem aqui?”, perguntou Gabriel. “Então, foi um prazer falar com vocês!” E aí, no que fez dele um final de conversa memorável, o pai do kleinen Mann nos deu seu momento de lição de vida questionável: “Só tenham cuidado com as mulheres, sabe. Elas vão tirar tudo de vocês, até que vocês não tenham nem mais as calças”, referindo-se, é claro, à sua ex-mulher. E aí nos deu um olhar sisudo de quem havia pronunciado uma máxima de profundo conhecimento.

Darwin e eu rimos e nos entreolhamos. “Pode deixar”, disse. Saímos do trem. Herr Preuß achava graça, e a última coisa que ouvi antes de pisar na plataforma de trem de Zoologischer Garten foi ele dizer que Gabriel, afinal de contas, não sabia de nada.

Mais ou menos às 10h da manhã daquela quinta-feira, o trem de onde saímos continuou rumo a Spandau, bem ao leste de Berlin. Nunca mais viríamos Gabriel e Herr Preuß em nossas vidas, e não sabia dizer se isso era bom ou não. Só sei que, ao atingir o nível térreo da estação, vi algumas pessoas tomando espressos em um café por ali, e tive vontade de sentar e perguntar alguma coisa sem noção sobre o que  eles achavam de ser somente a visão de alguém tomando um pequeno gole de café no segundo plano, um borrão de tráfego passando rápido pela rodovia, uma janela acesa na alvorada, algum cenário sonolento no final de uma manhã de quinta-feira. Talvez chacoalhando-os pelos ombros também, como teria feito com Darwin.

Mas não o fiz, ainda bem. Íamos nos encontrar à noite com mais vários estudantes gringos, e talvez esse papinho casasse melhor com uma Berliner Kindl, a cerveja mais barata daqui.

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4. Cadeados na passagem da Rathaus Schöneberg

Na semana seguinte, Darwin e eu tomávamos um caminho similar à universidade. No trecho feito a pé, passando pelo parque da Rathaus Schöneberg — prefeitura ou governo distrital do bairro de Schöneberg —, onde há algumas décadas Kennedy fizera seu discurso “ich bin ein Berliner”, vi pela primeira vez depois de meses passando por ali que há cadeados nos detalhes da lateral da ponte. Digo, não é bem uma ponte, mas a passagem construída sobre o pequeno lago e o parque adjacente tem muito cara de ponte para que eu a chame de outra coisa.

De qualquer modo, lá estão os cadeados, posicionados até timidamente considerando-se quantos cadeados se coloca em outras pontes. Ainda não tive a oportunidade de estar em Colônia, mas sei que lá há uma ponte famosa por isso. Em Portugal também, em algum lugar. Ali em Schöneberg, portanto, eles são menos numerosos, mas isso também não tira a graça. Coloridos com letras maiúsculas somadas umas as outras — onde João e Maria tornar-se-iam “J+M” —, eles se tornam a mais viva ideia de gravar as nossas iniciais no cimento molhado deste momento.

De repente voltei a pensar nas pessoas que conhecera no trem dias antes, na companhia de Darwin, a caminho de Zoologischer Garten. Em ocasiões em que multidões tomassem a ponte para protestar, digamos, contra a derrubada do que ainda há do Muro de Berlin, ou talvez contra as últimas medidas imponderadas do governo Turco, os cadeados seriam ainda menos que um pixel no campo de visão de quem ali estivesse. Mas sua sutil existência, exatamente como detalhe quase invisível, é o que fazia deles o detalhe mais bonito do cenário diante da Rathaus Schöneberg.

Como Darwin estava quieto naquele dia — ele tinha uma apresentação logo em seguida, e costumava sentir-se muito desconfortável com a ideia —, pude deixa os cadeados ali habitarem meu pensamento livremente. Aí me deixei levar pela beleza do momento, especialmente porque era sexta-feira e o tempo estava bom. 15 graus e sol, quase sem nuvens.

De todo modo, lá estavam os cadeados, como corações pulsando sem mover-se. Eles brilhavam no dourado do metal polido os raios de sol, e com isso, refletiam as letras lá escritas como pequenos projetores. E aí me ocorreu a beleza do oposto de tudo o que eu pensara até então: as janelas no plano de fundo de algum crepúsculo são, na verdade, uma parte indispensável dos cenários de qualquer um.

Quero dizer, são os estranhos tomando café na estação de Zoologischer Garten que, mais do que meros figurantes das nossas vidas, povoam vividamente um mundo aparentemente desconexo e sem sentido. Diria até que todas as histórias vistas ou ouvidas ao mesmo tempo — como se pudéssemos entrar na cabeça de Lena, Freddie, Herr Preuß, Darwin, Gabriel e até do kleinen Mann, revivendo integralmente todos os seus dias para entender suas olheiras e deixar de ser mais do que um borrão na visão ou outro passageiro qualquer no mesmo vagão de trem — talvez estourassem a capacidade de nossa cabeça.

E 'estourar' é a palavra certa, porque me vem à cabeça a figura de um balão, inchado quase além da sua capacidade. É justo que vejamos só a mínima fração de todas as pessoas, porque o resto fica a cargo da imaginação. E uma troca de olhar é suficiente para comunicar muito, como deu a entender, por exemplo, o Herr Preuß.

Enfim, como porta-voz do meu próprio coração afoito, calcando batidas desenganadas contra minhas costelas já consumidas pela saudade, gostaria de ter estado lá no trem, na ocasião da conversa com o Gabriel, também na companhia da detentora da outra letra maiúscula que há de ser gravada ainda no cadeado que será pendurado por aí. (‘genau, ich rede von dir!’)

Tudo isso porque, nesse caso, teríamos sido uma visão mais interessante ao Gabriel, quem sabe uma fagulha para que ele fosse repensar aquela lição de vida dada ao final da viagem de trem. Herr Hoffmann talvez tomasse por bem-vinda visão qualquer demonstração de paixão dada gratuitamente nos vagões que ocuparíamos, como artistas virtuosos tocando seus instrumentos nos túneis da cidade.

Às vezes mesmo o mais breve momento extraordinário pode ser suficiente palheta de sensações que, como uma verve incontrolável, atiça por inteiro a alma de quem os testemunha. As janelas que brilham no segundo plano são até insignificantes na sua função como fração do cenário inteiro — mas são indispensáveis pelo brilho que as torna chamarizes, centelhas e fagulhas de inspiração, pretextos de entusiasmada taquicardia ou pontos coloridos para os olhos atentos à beleza da sutileza.

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Do "Dicionário de Mágoas Obscuras" (Dictionary of Obscure Sorrows)
sonder
n. the realization that each random passerby is living a life as vivid and complex as your own—populated with their own ambitions, friends, routines, worries and inherited craziness—an epic story that continues invisibly around you like an anthill sprawling deep underground, with elaborate passageways to thousands of other lives that you’ll never know existed, in which you might appear only once, as an extra sipping coffee in the background, as a blur of traffic passing on the highway, as a lighted window at dusk.
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our initials carved on the wet cement of this moment:
http://mundoderascunhos.blogspot.com.br/2013/05/passerby-craziness.html