domingo, 25 de novembro de 2012

Esquecer-se: terríveis vultos (pt. 1)


Embora me considere um cara bastante introspectivo e entusiasta de uma boa dose de contemplação das paredes, uma das minhas maiores fontes de entretenimento certamente é encontrar pessoas com uma boa história. Tenho dois colegas bastante próximos que têm sido fontes constantes desse tipo de momento, e frequentemente me vejo diante de compilações verdadeiramente inusitadas de largas e detalhadas descrições de relevantes perspectivas no interior do Rio Grande do Sul e no litoral catarinense.

Por exemplo: um deles passou a ser recentemente o cara que já esteve em um cargo de gerência de uma sucursal na Índia aos 19 anos, comandando, entre outros, um sujeito que achava ideal manter o crachá de identificação pendurada no cinto, bem entre as duas pernas. Outra história memorável, pela qual me deixo convencer sempre, é aquela sobre como quase foi futebolista semiprofissional em alguma cidadezinha australiana. As pessoas são realmente surpreendentes de vez em quando.

O outro passou muito perto de padecer de febre em distantes aeroportos, chegando próximo de desfalecer em uma coleção de cidades e hostels mediterrâneos. Por sinal, parece-me que encontrou amor de verdade — ou assim gosto de entender o que me conta — e agora vive de felizes esperanças e eventuais tristes constatações. Nunca deixa de ser uma excelente conversa, precisamente por isso.

Aliás, no ensejo de alguma dessas narrativas, deixei-me levar por devaneios em uma boa meia hora de expediente outro dia, quando me foi explicado longamente como eram os detalhes nas paredes de mármore do Taj-Mahal. “É o tipo de coisa que não dá pra entender até que estejas lá”, diz ele. “Fiquei de cara. Mesmo.” As gravuras da fachada e a estrutura da construção – naquilo que a internet chama de uma das obras primas do estilo arquitetônico correspondente, como fui ler depois – são praticamente incontáveis, e todo o conjunto desenha a epítome da metáfora à qual voltamos sempre: viajar é partir para surpreender-se. Todas as culturas em algum momento  estarão à espera com algum memorial monumental, atentas ao seu queixo caído.

Nisso ele continuou: há certas rodovias e estradas indianas à beira das quais crianças cadavericamente subnutridas deitam no meio-fio, entre lixo e sujeira. Nada particularmente idiossincrático, mas foi o suficiente para causar uma impressão e tanto em mim. E um pouco longe disso — mas em uma realidade não tão distante — os seus colegas de trabalho indianos gostavam de comer uma refeição apimentada só com a mão direita. Suas vidas são temperadas como suas refeições, e um ocidental desavisado não percebe isso até que queima a língua com o molho ardido. Enfim, suponho que não seja possível de manter uma convicção de pé quando alguém te olhar rindo e pronunciar com sotaque exótico que, veja só, o importante talvez não seja nada disso que você está querendo. Ele não precisa saber onde fica Santa Catarina, mas o indiano preza em sua casta uma realidade paralela a nossa — e é feliz à beça.

“Como assim? É um lance tipo o karma?”, pergunto, já conhecendo em parte o assunto, mas indagando do mesmo jeito. “É, por aí”, diz ele. “Castas e tal.” Ninguém lá é exatamente um poço de conformismo, mas não é difícil de imaginar que as pessoas tenham um espectro de perspectiva completamente diferente: quem morre sabendo que vai ter uma bela pós-vida, morre feliz. “E aí não faz mal que o cara morra na merda”, concluiu ele, pensativo.

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Esses meus dois colegas viajam logo, e amanhã não estarei aí. Despedi-me deles tão logo terminaram as narrativas sobre países longínquos e fusos horários opostos. A um deles, como de praxe, pedi um cartão-postal; ao outro, não disse nada, mas não foi necessário. “Não curto muito escrever”, ele acrescentou espontaneamente e riu.

Ah, é realmente uma pena: no meu pretenso costume de escrever vez ou outra as abstrações sem sentido, referências pouco claras, amores e desamores que acontecem por aqui, imagino que, se meu colega nunca parar para registrar, um dia as suas histórias serão esquecidas sem dó. Bom, por certo ele também não estava sentindo muita piedade das histórias. Até o questionei se não lamentava ter deixado de lado a oportunidade de ser o brasileiro futebolista ganhando uma grana na Austrália ou de viver um sonho bollywoodiano, mas não. “Foi uma fase, e daqui a pouco vou estar em Hamburgo trabalhando num emprego ‘da hora’, vais ver só”.

Minha fobia do esquecimento me engasgou.

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O turbilhão de memórias continua, mas a história passa a ser minha — estive em um casamento há pouco tempo. Melhor dizendo, o casamento do meu irmão, e um dos dias mais felizes que já pude viver. Havia no ar um clima bastante incrível de êxtase e genuína felicidade, impressionantemente não limitado ao casal. Talvez o padre tenha acertado ao dizer que estávamos celebrando o amor.

O lugar era bastante bonito, é importante não esquecer. A igreja de Gaspar é grande, alta, com pilastras majestosas, uma bela fachada, com cores vivas e gritantes, uma escadaria alta, e o altar simples, mas emocionante. Lá eu chorava, como bom padrinho. As pessoas iam entrando, e eu lá soluçando no altar que ocupava só como feliz testemunha. Limpo o suor da testa, ajeito a gravata prata e poderia continuar, mas em termos de esquecimento, há outro foco — lá pelas tantas, minha avó sobe ao altar.

Vamos lá: tenho uma avó que tem uma séria doença degenerativa no cérebro, e isso a faz esquecer-se de tudo e todos depois de certo tempo, permitindo-lhe uma cara amistosa, dócil, confusa e um constante ar de admiração. Estamos sempre a nos perguntar se ela realmente compreende o que se passa. Talvez finja entusiasmo para que paremos de dar atenção ao fato de que ela de fato não pode estar totalmente ciente daquilo que a cerca.

No conjunto da pessoa — com seu tailleur cor-de-rosa, cabelos crespos e simpáticos óculos redondos —, vi uma adorável mulher no limiar do esquecimento.  Alguém que assentia alegre e cordata a cada afirmação entusiasmada do padre eloquente, mas que me dava ao mesmo tempo inexplicavelmente uma impressão triste. Eu provavelmente estava fortemente influenciado por saber qual é sua real condição médica, mas não pude conter um soluço menos contido quando a vi subindo os degraus que levavam até os noivos.

Por alguns segundos no altar, lugar e hora bastante improváveis para tal, vi-me diante de uma série de recordações de quando meus primos, meus irmãos e eu éramos criança e corríamos pelo quintal dela. Nesse tempo, ela costumava fazer pão de queijo para nós, cujo sabor e textura sempre permanecerão irreproduzíveis. Talvez já tivesse tido a sorte de provar algum pão de queijo com cheiro não muito diferente, mas o gosto nunca será tão bem misturado com a memória do cheiro dos limões e do galinheiro abandonado no quintal. Pensando bem, não sei se meu paladar saberia distingui-lo se o estivesse provando novamente.

O pão de queijo, é claro, é apenas um exemplo. Ninguém choraria porque sente tanta falta de uma ou outra iguaria específica. Mas lamentei que minha avó — e sua alma, arrisco-me a dizer  —  estavam apenas em parte presentes. O resto fora já outrora soprado pra longe.

Meu ponto: acho que imaginar uma vida inventada para ela não vai ser o suficiente depois que cair no infinito abismo do cérebro plenamente degenerado. Lamentarei infindavelmente, mas enquanto não houver alguém que se disponha a biografar a sua vida por completo e faça com que choremos de nostalgia (e não só saudade), vou viver atormentado por ter conhecido só uma lembrança viva e já borrada. Sua voz trêmula vai desaparecer, por nunca tê-la gravado, e seu quieto mundinho interno conhecerá a extinção, por não o ter transcrito. Conheço-a, pelo jeito, muito menos que deveria, mas agora teremos cada vez menos de si para contar ao mundo.

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Viver, arrisco dizer, é estar imerso em um fluxo de memórias, servindo a nossas vidas como narrativas paralelas. Aqui, onde somente a introversão vê prazer, os fantasmas surgidos do assombro da transitoriedade são terríveis e assustadores vultos. As narrativas paralelas de outrora são lembretes sérios e impassíveis de que possivelmente as partidas futuras serão a tônica constante de tudo o mais que sobrevier. Se o desapego, como os vultos espreitando nos cantos no aguardo de um passo desatento, ousar estar certo, dar-me-ei por vencido pelas futuras tentativas de fincar raízes nas pretensas veredas oferecidas pela minha fácil e vã vida. A leveza com que o tempo passa é, como bem dito entre Joinville e Blumenau, tanto nossa tragédia quanto nossa esperança. 

nunca me esqueço:
http://mundoderascunhos.blogspot.com.br/2012/10/retoricas-sobre-esquecimentos.html

Esquecer-se: felizes vultos (pt. 2)


Em uma perspectiva mais deslumbrada, por outro lado, há o puro bliss extasiante de acordar com a cama tomada pelo súbito ar perfumado, pelo corpo quente e o único sorriso que eu consigo aceitar como belo e único. Sobre as longas mechas castanhas que adornam tanto minha incrédula realidade, paira o inconfundível motivo para abandonar qualquer pensamento que faça qualquer referência de longe à pedra de Sísifo. É visível como a assustadora perspectiva de assistir desmoronar o produto de semanas, meses e até anos de trabalho pode parecer apenas distração nesse tipo de momento. 

O karma indiano, as histórias infindáveis que serão sequer incluídas nos anais de qualquer registro, os tristes parentes e fantasmas que levarão consigo as biografias impublicadas, o gosto de pães de queijo inauditos: todos os itens dessa lista efêmera e volátil são os fractais infinitos de explicações incompreensíveis (cujos desdobramentos jamais cessam), resultando em uma única conclusão, demonstrável somente pelo afã do momento descrito agora: quando a luz batia pela janela em uma pequena fresta, na perfeita temperatura de novembro às 10h30, e a expiração brusca e barulhenta do labrador no andar de baixo são o único (e praticamente imperceptível) ruído, abri os olhos e fui recebido com o ‘bom dia’ mais doce que já pude ouvir. Meu corpo por completo ainda estava sedado pelo sono confortável do colchão de casal macio e pelo ar gelado do quarto. Despertei aos poucos, perguntando-me se podia aceitar aquilo sem remorso de todas as conversas tidas durante os dias úteis, nos bares, nos bancos da faculdade, e oferecidas por todas as inadiáveis e terríveis dificuldades alheias.

Ainda assim, confortei-me em meu mais sincero sorriso, e de olhos fechados, com todas as perspectivas de tempo convenientemente afastadas, citando um grande amigo, percebi: tem gente que vive uma vida inteira e não sente isso que a gente está sentindo. 

Não há medo do futuro que consiga persistir incólume. 

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nunca me esqueço: 
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sexta-feira, 5 de outubro de 2012

"I'm not ready for the grave yet", de B. Fleischmann



"I'm not ready for the grave yet",
said future, and had a cigarette, 
because my parents and grandparents
are still looking at needles... right?

"I'm not ready for the grave yet",
said the color, 
even if black and white are 
to start the painting of the world.

"I'm not ready for the grave yet",
said human, 
even if my enemy, the choke,
tries to hold me in the cellar. 

"I'm not ready for the grave yet",
said the song of hope, 
even if I'm tired 
of carrying my brothers and sisters.

"I'm not ready for the grave yet",
said the human race, 
as long as I keep my killing, 
I'm alive.

"I'm not ready for the grave yet",
said self-pity, 
and had another 
full glass.


"I'm not ready for the grave yet",
said greed.
(I am betting so well
I hope I won't burst 
like the 'dot com' bubble!)

"I'm not ready for the grave yet",
said the song of hope, 
and was downloaded 
by the 99% of the true fans.

"I'm not ready for the grave yet",
said the books, 
letters and papers, 
impatient like people's anger;

"I'm not ready for the grave yet",
said human, between the stories;

"I'm not ready for the grave yet",
said crisis, 
because there are new ideas
that could harm me


"I'm not ready for the grave yet",
said history, 
I'm alive, everyday!

"I'm not ready for the grave yet",
said history, 
I'm alive, everyday!

"I'm not ready for the grave yet",
said history, 
I'm alive, everyday!

"I'm not ready for the grave yet",
said history, 
I'm alive, everyday!


"I'm not ready for the grave yet",
said hope (that's the spirit!)
— and it was blowing in the wind. 

domingo, 26 de agosto de 2012

quarta-feira à tarde


Uma fanfarra está marchando e batendo furiosamente seus tambores, caixas e bumbos por cada veia e artéria pulsando meu sangue. Sou a sublime epítome de toda a existência humana porque quero morrer agora. Preciso morrer agora: nada do que pode vir depois pode ser melhor do que o incansável verve que grita em minha cabeça, torcendo os tendões de meus braços e convocando minha íris a buscar o reflexo azul do céu catarinense.

Vendo a minha alma para nunca mais perder a epifania deste minuto, o cheiro de café, o perfume doce, o sorriso sobre a barba batida na mesa ao lado, as cicatrizes, as teclas de marfim gasto no piano de cauda, as batidas do relógio em movimento — cada segundo é sagrado — e as flores amarelas do Ipê, já no chão: quero dissolver-me na hipérbole inquieta de viver. 

Frisar seu cabelo com a mão, os pontos de exclamação, os corais eruditos, a inexplicável risada despida, os corpos nus e cada arranhão, minha pálpebra inferior palpitando, a êxtase insone, todos os cenários já habitados em sonhos, as cores distorcidas, o universo e o seu quintal: estou tremendo de expectativa pelo futuro. 

Sou a definição ambulante da prosa inspirada pela vontade insaciada. Minhas pernas não se assentam, as solas dos meus sapatos estão furadas, as minhas pulseiras coloridas estão ficando gastas, e as marcas na parede são a alma da casa abandonada que há na rua que leva até o parque. O cheiro da grama cortada, os pássaros migrando e os patos na lagoa artifical, o vento quente da meia estação, a minha inspiração. O pedido eminente para que não, não vá embora; a brisa abafada que vem lá de fora, a memória da tempestade e do trovão, a água gelada, as metáforas intangíveis para sensações concretas, a expectiva mesclada de medo e delírio, a taquicardia, a verdade, os ofegantes corações, a saudade, o sentido figurado dos tufões, a idade, o canto entoado por milhões. A liberdade, a crença de igualdade, esperança e as transições; os acordes maiores, a vida resumida em paixões. 


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Hoy llamé a casa abandonada, 
tiempo que pasa crea inestabilidad:

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Paulatinamente


Lembro-me bem das aulas da Prof.ª Karen¹, especialmente quando chegamos ao ponto em que ela nos dividiu para ler “Vigiar e Punir”. Nossa tarefa era entender o “panóptico”, modelo de sistema carcerário de penitenciárias circulares, com uma alta torre de observação construída no centro que cria aos encarcerados isolados a constante sensação de estarem sendo observados. Frisa-se que ser observado constantemente implicaria necessariamente em uma punição imediata em caso de mau comportamento (algo substancialmente eficaz em termos de controle de grupos).

Por certo há aí toda uma discussão sobre sistemas penais ou carcerários, mas foi outra coisa que me deixou pensando por mais tempo. Pareceu-me, quando primeiro começamos a debater o porquê dessas idéias, que esse modelo é baseado exatamente em algo muito mais amplo. Afinal, posso supor sem maiores problemas que vigilância interminável é exatamente todo o ponto de qualquer mecanismo de convivência social, porque passar pelo crivo de todos é exatamente aquilo que define até aonde vai nossa moral e sua aplicação prática. Anda-se nu dentro de casa só com as persianas abaixadas. Em qualquer contexto, o debate em liberdades individuais começa exatamente no momento em que elas deixam de ser individuais e são debatidas — no gabinete da enésima vara, ou no meu sofá no sábado à noite.

Nada novo nisso tudo. Mas aí continuam alguns problemas, já que o papel de frear ou liberar certos impulsos cabe ao abstrato poder estatal. E uma palavra que certamente vem à cabeça quando alguém fala em, digamos, governos autoritários e ditaduras é a questão da censura. Há sempre só um lado da moeda, estampado com a cara da Rainha de Copas, porque não se aceita algo contra a vontade já sólida e decidida do status quo. Quando não se corta a cabeça alheia ou quebra-se as pernas, reduzem as opiniões contrárias às dezenas (e está aí a Bill 78 em Montreal que, tão atual, não me deixa mentir).

E aí chegamos no ponto que eu pretendia: o poder de calar ou deixar falar, mesmo em nível de decisões estatais, só pode derivar de uma grande vaidade individual de não se aceitar aquilo que pouco a pouco — paulatinamente — foge das expectativas. Sempre há quem preferirá suprimir, omitir e excluir. Os outros poderão sempre fugir em exílio, rumo à paulicéia.

O que resta disso é que os grupos são proporcionais, assim como as suas respectivas bobagens e censuras. As tolas concepções de falta de caráter, os tristes debates acerca dos erros dos outros — quem pensamos que somos?! —, e as cabeças cortadas (em metáfora ou não); todas as falhas de viver em grupo ecoam. Nossos momentos de ébria felicidade comemoradas na páscoa, nos feriados nacionais e durante as férias são pesados com receio.

E, ainda que seja questionável e exagerado o pragmatismo individualista dos ermitões, decepciono-me com decisões democráticas em grupo. Não há voto vencido: cortem-na a cabeça. Condenem-na ao ostracismo. Façam com que fique quieta. Simplesmente a evitem, e que viva para sempre a vergonha de atitudes daquela que — pasmem! — fez algo do qual discordaram.

Mas sem pânico: com alguma sorte, a verdadeira necessidade de se fazer ouvir frente a terríveis atos institucionais nunca mais será realidade por aqui. Felizmente, só conheceremos essa censura tola que queima sob nossas pequenas panelinhas.

Enquanto isso, diante dessa pequenice toda, o rude pedido de silêncio de agora será indiferença depois. Se estamos mesmo em um panóptico, a prisão é a torre de observação. Toda canção de liberdade vem do cárcere. 


Por fim, se há alguma lágrima ou decepção, é porque se lamenta a falta de bom-senso da Rainha de Copas, tão desvairada.

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(1)  — “Se estiverem felizes, fiquem felizes; se estiverem tristes, fiquem tristes! Vivam o momento!”

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quinta-feira, 14 de junho de 2012

Pasteur pipettes


O mundo é um conta-gotas colossal de histórias que morrerão junto com seus protagonistas: há um parágrafo em cada esquina, sobre cada lençol manchado, por trás de todos os suéteres rasgados e inclusive à frente das mesas de madeira de demolição. Nossas reclamações aborrecidas revelam aparentes confissão de almas vazias, mas há na verdade menos almas vazias que tatuagens no corpo do conservador recluso — e por isso somos todos palhaços em um romance russo que não vai ser lido, porque o hábito de ler perdeu-se com o tempo. Tampouco há tempo para perder com traduções, eufemismos e parêntesis, e infelizmente não haverá ninguém para deixar notas detalhadas sobre os carecas enfurecidos que estouram garrafas de Heineken nas cabeças uns dos outros em bares sujos por aí, ainda que tenham passado suas vidas lendo extensos tratados de sociologia. Ansiamos pelas autobiografias que surgirão para contar fatos notórios e sabidos, mas teremos ao final uma decepção de 200 páginas e 50 capítulos, cuja edição mais caprichada nunca chegará a prateleira central da livraria catarinense e talvez venderá menos que aquela compilação de contos de um blumenauense (à venda sobre a mesa de centro no consulado). 

Nossa cabeça é um infinito conta-gotas de histórias que morrerão conosco: enquanto nos entretemos até a morte, acumula-se o número de paginas que você poderia estar escrevendo (e eu, lendo). Devíamos estar registrando em meu teclado ergométrico cada passo daquele meu conhecido que se parece com um lêmure  ao invés de perder tempo fazendo mais café. Devíamos estar construindo monumentais obras rimadas para contemplar quando nossa autoestima estiver baixa, e devíamos estar aprendendo latim — ah, a vida é tão sem propósito quando gastamos fios de cabelo pensando na morte. Vamos lá, é hora de tirar mais fotos para entreter nossos netos entediados: quem sabe um dia eles se deparem com álbuns de fotos perdidos em um álbum no canto da casa.

São também conta-gotas as impressões de mundo que ouvi de meus melhores amigos: quero conhecer mais uma vez todas as histórias e repassar em minha mente longos monólogos sobre o sol da meia noite. Vou aprender a falar somente frases de efeito com entonação engraçada. Escreverei um longo diário fictício que se encerrará em uma praça grande e vermelha onde olhares são transcritos em alfabeto cirílico, e contemplarei frequentemente em devaneios a estátua do Almirante Nelson no topo de sua coluna, gritando a vitória rimada em gíria cockney. Vou escrever sobre Montreal sem nunca ter ido para o Canadá. Vou vestir um terno e atear fogo em mim. E ao final do dia, ao olhar-me no espelho, vou cruzar os dedos, esperando que dure para sempre o ar que enche meus pulmões.

Todas as frases são — veja só — conta-gotas pingando seus pensamentos de pouco em pouco. Assim, longos diálogos fazem menos sentido que esses frases,  e por isso o trabalho é a melhor distração do que um blog. Mas nada disso é suficiente. Então, ainda que eu queira passar meus dias escrevendo metáforas ruins e longas frases que não fazem sentido, prefiro reduzir-me ao pragmático.


Em outras palavras, é minha deixa para parar de escrever besteira, e amanhã mesmo irei ao correio enviar-te um conta-gotas junto de um bilhete (eis aí, enfim, algo que valha a pena ser escrito). E antes que me esqueça: antes de enviar o conta-gotas de volta, prometa enchê-lo até a metade com seu perfume, para espalhar pela casa em tua ausência. 

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Where droppers are poetry,
where texts make sense:
http://mundoderascunhos.blogspot.com.br/2012/06/acucar-ou-adocante.html




domingo, 20 de maio de 2012

Os suspiros de Dona Célia (ou: Bob Dylan, chuva e insônia)

É de se perguntar se algum dia Bob Dylan realmente recebeu de Suze Rotolo pelo correio aquelas botas de couro italiano, junto com o ouro das montanhas de Madrid ou da costa de Barcelona. Nunca saberei ao certo, mas gosto de imaginar que ele combateu a insônia até desfalecer em 1964, e que no dia 25 de fevereiro de 2011, um grande poeta em algum lugar revirou-se na cama sem adormecer.



Em uma realidade muito distante de tudo isso — um ano, dois meses e cinco dias depois — conheço Dona Célia esperando o ônibus vir em uma rua longe do centro de Blumenau. Estou com vontade de ouvir o “The Times Are A-Changin’” que tenho no celular, mas esqueci os fones de ouvido. Aí estava a oportunidade de jogar conversa fora.

Quando sento-me no banco, Dona Célia (que definitivamente tinha cara de ‘Dona Célia’, mas é um nome hipotético, porque ela nunca se apresentou) não diz nada. Mas eu também espero pelo 31 e estou impaciente. Tenho dormido pouco, por insônia e noites em claro olhando para o teto, e também porque andei me aventurando ébrio pela sexta-feira à noite, então estou ansioso para chegar logo em casa. Por isso preciso saber:
“Será que demora o 31?”, digo, tentando não ser rude.
“Olha, meu filho”, seu sorriso é tão amarelado e torto quanto acolhedor, “deve vir logo, porque estou aqui há um tempo e ele ainda não apareceu.”
O perfume dela me lembra o da minha avó.
“Ah, ok. E que horas são?”
Era 11:34 da manhã, ela me informa. Antes de chegar no próximo minuto, no entanto, ela volta-se ao estojo bastante grande que carrego comigo.
 “É um violão? Não gosto muito de violão, mas—“
“Não, é um violoncelo”, retribuo com meu sorriso de café, e ela continua ainda na mesma frase:
“—ah, violão não gosto muito, mas esse violoncelo tem som bonito. Tem sim, é. O violoncelo”, e gesticula pinçando as cordas do seu instrumento imaginário.
“Violoncelo se toca com o arco, não é? Quero dizer,” e aí toco um arco imaginário no instrumento guardado, subentendendo provavelmente que o gesto dela não estava errado, mas não estava totalmente certo também. Mas disse por dizer, também porque tinha sono, e completo: “…né?”
“Ah, sim. Arco, é. Pois é, música clássica é bem bonita. Você gosta de música clássica? É bonito, não é?”, ela fala sem deixar muita oportunidade de dizer algo entre suas frases. “Sempre deixei meus netos ouvindo música clássica, ouvindo o… como é mesmo o nome? É bem bonito sim, com os violinos— ah, não me lembro do nome do cara. Mas gosto muito! Sabe, eu vi uma entrevista no Jô esses dias (você assiste o Jô?); tinha um maestro que ficou sem movimento das mãos, assim, ó. Conhece?”
 Não conheço, infelizmente. A conversa é interessante, e ela continua:
“Ah, mas você tinha que ter visto. Ele tinha um, como se diz?” Ela então gesticula apontando para o antebraço, e para o cérebro, abrindo e fechando as mãos, “e aí tiveram que fazer uma cirurgia, porque ele não conseguia tocar piano (ele tocava piano), e aí mostrou ele fazendo a cirurgia, e aí mesmo na cirurgia ele já estava começando a mexer os dedos!”
Ela está abrindo e fechando a mão, com o punho voltado para baixo. A pausa é enfática:
“Mas aí ele apareceu no Jô e tocou a música. Tocou o piano dele lá. E…é, foi muito bonito. Muito bonito!, até me emocionei”.
Não podia ver seus olhos, porque os óculos escuros grandes com as lentes em degradê ocultavam a maior parte de seu rosto. Sei, ainda assim, que ela suspirou bastante desconsolada, ajeitou o cabelo parcialmente tingido de castanho claro, e voltou-se para mim:
“Bem triste. Mas meus netos gostam. Né, porque eles gostam daquelas músicas deles.” Às vezes faltavam-lhe palavras. Mas ela prosseguia: “Você sabe, aquelas músicas deles. Mas gostam de música clássica, é.”

NIsso veio nosso 31, e acabei sentando-me distante dela, mas trocamos sorrisos quando nos cruzamos no corredor. Demoro para me ajeitar, e noto que o assunto morreu no ponto. Até a hora em  que ela grita para alguém mais à frente para que apertem o botão, porque ela tem que descer, e então vira-se para meu lado:
“João Carlos Martins!”
“Como?”
“João Carlos Martis”, ela exclama mais pausadamente, “é o nome do maestro. O pianista!”

E desceu no seu ponto.

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 João Carlos Martins, como fui olhar no Google mais tarde, é realmente um músico que teve um nervo rompido. Era pianista, e depois, por força das circunstâncias, tornou-se maestro. Sinto um repentino pico de empatia: como deve ser perder o movimento de uma mão? Qual é a dor de romper um nervo? Teria João Carlos Gandra da Silva Martins (é seu nome completo) contemplado a insônia sentado em sua cama, completamente perdido em uma repentina mudança de perspectiva?

Mas há mais por vir que angústia. Diz aqui em uma de suas breves biografias pela internet que o maestro é um grande exemplo de superação. Conta-se que uma noite reviu em sonho um conhecido regente chamando-lhe para tocar o piano, e ao acordar (posso imaginar claramente), viu-se novamente na tormenta de uma perspectiva nova. Sentiu-se no ímpeto de sentar-se ao seu instrumento tão querido, mesmo com as mãos deformadas, porque há mais por aí do que dissera a si mesmo em sua insônia violenta. To die, to sleep no more. Ou, melhor dizendo: to live, to sleep no more.

Entretanto, enquanto ainda estava no caminho para casa no ônibus que chacoalhava e jogava o cello de um lado para o outro, essa história do maestro ainda era desconhecida. O meu entretenimento resumia-se a imaginar de onde viria o suspiro profundo de Dona Célia. Ainda assim, era difícil de supor qual mal eventualmente teria lhe paralisado a mão, ainda que metaforicamente, até porque não sabia nem que cor tinham seus olhos. Ela somente me dava alguma pista por fazer-me lembrar de minha avó, e perguntei-me se ela também enfrentava o desalento da morte que se aproxima, cada vez menos sutil.

À medida que avançamos pelos bairros, a paisagem ficou cada vez menos bucólica (chegamos a passar até por um pasto), e fico feliz de ver as casinhas de colonos alemães. Fico feliz de poder andar sem medo com meu violoncelo por aí, e não sei dizer o que há para tirar o sono de quem está ao redor. Blumenau, apesar do que disse outro dia meu vizinho desinformado, é uma ótima cidade. E pairou a pergunta: em tempos de austeridade distante e comissões da verdade, qual é o motivo de insônia de meus conterrâneos? Em momentos de temor pelo futuro que parece prestes a ruir na metrópole, o que se passa por aqui? The times are really a-changing? Ou sou só eu que tenho tomado café demais?

Virei-me para os outros que também sentavam no 31. Havia, para começar, uma moça de tez negra muito bonita que balançava a cabeça com a música que ouvia no celular. Alguém sabe o que lhe tira o sono? E o homem sério atrás do óculos e bigode, que ensaiava uma conversa movendo os lábios sem pronunciar nada? E agora, José? Os personagens são muitos: havia na rua uma adolescente muito bonita, que ajeitava o cabelo insistentemente e esperava por alguma coisa. Havia também aquele sujeito baixinho com uniforme de futebol de salão que sempre está fazendo embaixadinhas no semáforo, e me surpreendi ao ver como alguém conseguia fazer tantos truques com a bola e manter um aspecto melancólico daquele jeito. Vi ainda um motociclista que vestia uma réplica do capacete do Ayrton Senna. Aposto quanto você quiser que a nostalgia dele também é gigante.

Também por ali havia aqueles menos atentos a esses detalhes, como um pessoal com vestes da Cruz Azul recolhendo doações para usuários de drogas. Não pareciam lembrar da sua causa, que em algum lugar alguém definhava com a falta do crack, mas não os culpo. Seus sorrisos são um alívio para os transeuntes e motoristas que iam sei lá aonde num sábado de manhã. Quem sabe a insônia não cause tanta perturbação para essas pessoas, Deus lhes pague.

De qualquer forma, os exemplos continuam, como no dia que vi um rabino junto de um grupo de padres, e um bispo, caminhando risonhos pelo Aeroporto Salgado Filho. A vida, veja só, está cheia de personagens interessantes, e a empatia supera qualquer outro tipo de escapismo.

Carlos Fuentes, autor que faleceu recentemente (“que Deus o tenha”), por outro lado, estava falando ontem em uma entrevista reprisada na TV sobre como Machado de Assis seguiu a tradição de Cervantes. Explico: esses autores, conforme disse o escritor mexicano, exploravam muito o direito de inventarmos nossos próprios universos. O naturalismo de certos autores latino-americanos, segundo ele, é supérfluo, porque não precisamos repetir frases de pessoas de carne e osso para dar verossimilhança aos textos.

Mas discordo em parte, porque retratar esses personagens tristes (ou teorizar sobre suas vidas, como Marta gostava tanto de fazer) é um passatempo fascinante. Até esqueço dos habitantes da minha própria mente: amores e desamores recentes, que ainda aceleram meu coração e me tiram o fôlego; o câncer de mi abuelo; o futuro promissor que às vezes ameaça apagar como um cigarro que vira cinzas; e a minha vontade de correr na contramão, atrapalhando o trânsito.

Enfim, há uma miscelânea de sentimentos e suspiros nos ares, até para um sábado de manhã. E tudo isso fica latente no domingo à tarde, especialmente se o tempo estiver fechado. Sou tomado pela saudade do Bob Dylan por uma de suas ex-namoradas, juntamente com a melancolia velada ou indiferença contente das pessoas que habitam nossas vidas como figurantes de um filme no Canal Brasil.

No entanto, acabo por imaginar a angústia que o pianista de mão engalfinhada uma vez chegou a sentir, e vejo que seu grande legado é maior que a música, porque ele é, afinal, um exemplo de superação e persistência. Com isso, vamos todos rir, porque a insônia só nos dará tristeza no dia seguinte e há mais por aí que podemos imaginar. To live, to sleep no more: estamos no limiar da alvorada.

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Ainda assim, até o canto do sabiá é triste quando chove. É verdade, look it up.

Ou espere até setembro.

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...and by a sleep, to say we end the heart-ache:
http://mundoderascunhos.blogspot.com.br/

*

domingo, 13 de maio de 2012

Like freckles in your arms


(É tempo de escrever coisas que provavelmente ninguém mais vai entender ou mesmo ler.)

Há alguns dias, não muito tempo depois de contestar diariamente um arrependimento que me adoecia as ideias, tive a oportunidade de dar algumas voltas de carro, na busca de qualquer lugar afastado de onde fosse possível ver o céu. Era a ocasião de aparecer a maior lua do ano, a "supermoon", que veio não muito maior que a lua normal. As estrelas não contiveram o brilho também intenso, e acabamos por ver um céu bastante inspirado.

Estrelas multiplicam-se no escuro. Diz-se que, em sua maior visibilidade e clareza, são um grande guia de localização, porque sua disposição (ainda que em constante movimento) está lá como complicadas indicações de direção, e suspeito que se formos longe o suficiente das luzes da cidade, podemos ver até a via láctea (“...deve ser uma visão e tanto”). É quase como no livro de rabiscos de um maníaco, cheio de itens coloridos que não têm nenhuma relação aparente entre si, nenhum esquema claramente distinguível. De qualquer forma, por mais bonito que fosse, não soube dizer, no entanto, qual era o propósito de imaginar e dar nomes a conjuntos de estrelas. Fui então ver um livro ou outro (“A Walk Through the Southern Sky” foi um princípio bastante elucidativo), e dizia lá que constelações são mapas disfarçados de desenhos e poesia grega antiga, com odes a ninfas e caçadores correndo atrás de Afrodite*. Em outras palavras, três pontos brilhantes em linha reta, outros quatro pontos arqueados, mais um punhado espalhado, e pronto: lá está a constelação de Sagitário, nascendo ao leste, enquanto Órion se põe ao oeste, fugindo do centauro que protege Hércules. O cruzeiro do sul debaixo do Centauro, por outro lado, não tem nenhuma lenda a justificá-lo.

O mais fascinante disso é que nenhuma das constelações é óbvia. Até o cruzeiro do sul é uma cruz bastante questionável, mesmo porque poderia ser qualquer outra coisa pelo padrão dos outros desenhos. Claro, a ideia de imaginar desenhos ao redor das estrelas foi só um método muito inteligente para identificar padrões em pontos bastante esparsos aleatoriamente, então tudo isso é uma questão mais secundária. Ainda assim, é bem aí nesse ponto secundário — porque às vezes o secundário é mais divertido que todo o resto — onde começa esse divertido exercício de associar qualquer nova ideia às estrelas, e permitimo-nos a abandonar os mapas astronômicos que já estão aí a tanto tempo. Imaginemos livremente o que terá o céu a nos dizer nessa ou naquela noite, e as metáforas serão em mais número que as próprias estrelas. Veja, gosto de pensar, para começar, que essa coisa transitória e fugidia do lento movimento das estrelhas ao longo dos meses é uma metade de nossas vidas, sendo a outra o eterno e o imútavel, posto que as estrelas sempre voltam aonde já estiveram. Capisci?

Ou: podemos inventar sozinhos um mapa de estrelas, a título de nos orientar com sinais não visiveis a olho nu, e teríamos, então, nossa própria coleção de constelações como memorabilia. Cada mês, uma recordação: Abril, Eros e Dionísio; Maio, Thanatos e Psiquê. Ou quem sabe até algo menos pretensioso, e daríamos a cada trio de estrela uma música do Beirut, ou uma canção em inglês para cada plêiade, e as maiores teriam nomes em alemão: “Sehnsucht”, “Abwesenheit”, “Schweigsamkeit”, “Die Nacht”, "Herbstabend", ou sei lá mais o quê. A única exceção seriam aquelas que estiverem dispostas no céu como as pintas de nossos braços, que terão nossos nomes de verdade.

De qualquer forma, há de ser algo bastante interessante: nossa orientação por um tracejado de linhas imaginárias, livros de poesia, e promessas — cumpridas ou não. Suerte!
  
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*Um dos muitos sonetos de Camões, achado ao acaso:

Deixa, Apolo, o correr tão apressado,
Não sigas essa Ninfa tão ufano,
Não te leva o Amor, leva-te o engano
Com sombras de algum bem a mal dobrado.

E quando seja Amor será forçado,
E se forçado for, será teu dano:
Um parecer não queiras mais que humano,
Em um Silvestre adorno ver tornado.

Não percas por um vão contentamento
A vista que te faz viver contente:
Modera em teu favor o pensamento.

Porque menos mal é tendo-a presente,
Sofrer sua crueza, e teu tormento,
Que sentir sua ausência eternamente.

“Up a tree in the park at night with a Hedgehog”, últimas linhas:

"Oh, look at that.
Stars.
I didn't notice them before.
It's funny how people always strive for the most hyperbolic, poetical and grandiose terms when trying to describe stars and how far away they are. It's all vast empty reaches of space and aeons of light-years when all anyone really needs to say is they're a long way away.
A long way away is a long way.
But they're not really a long way away either.
They're a long time ago. They don't exist any more. Some of them went boom before Adam was a boy. What we're looking at are the memories of stars.
 But they're beautiful just the same."


--

* Are there patterns in our skies, are patters only in our eyes?

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Ah, vida.

"Herbsttag", de Ranier Maria Rilke*

Senhor: agora é tempo. O verão passou lento;
repousa tuas sombras sobre as horas de sol
e pelos corredores deixa soprar livre o vento.

Ordene que estejam cheias as últimas frutas
dê a elas mais dois dias sulistas
com afinco pressione-as
e cace a doçura restante do mais pesado vinho.

Quem agora não tiver uma casa, não mais a construirá;
Quem agora estiver sozinho, assim enfim permanecerá,
crescerá, há de ler, e longas cartas escrever
e vagará por avenidas aqui e lá
afoito, quando as folhas impelirem-se.

--

Diz-se que te fazer pequeno de nada serve ao mundo
Mas teu tamanho é descontado de cada desacerto.
És pequena jóia sem valor, quebrado e sem conserto
errado, inexato, contestável, parvo, imundo.

Talvez (na falta de comparação melhor)
é como os cartões postais nunca enviados
que tornaram-se contrariados
marca-páginas.

Ai, vida. E agora,
o que Drummond faria?

--

"Wer spricht von Siegen? Übersteh'n ist alles!"
http://mundoderascunhos.blogspot.com.br/2012/04/um-medo-peremptorio-do-ego.html

*
Original encontrado aqui: http://www.gutenberg.org/dirs/3/4/5/2/34521/34521-h/34521-h.htm
Tradução minha e do de.thefreedictionary.com

Es de dudar si el dilema

Como distração
sentei-me com um velho amigo:
Equilibrando livros na cabeça
debatemos os limites del capitalismo
("hay em el sistema capitalista
una tendencia inherente hacia la autodestruicción
es de dudar si el dilema (...)
puede ser neutralizado de esta manera").
Ignoramos, já bastante cansados, nossa incultura
sobre complicadas teorias econômicas.
Apenas perguntamo-nos lendo das páginas
em voz alta frases altivas:
¿Acharemos
algum dia
figuras de linguagem definitivas
que substituirão concisas
os percalços de nossas vidas inteiras?
Somos apenas grandessíssimos filhos-da-puta;
sabemos quanto valem nossas besteiras.
Quem dera fosse nossa existência uma luta
Quem dera tivéssemos uma guerra das antigas.



quarta-feira, 18 de abril de 2012

A ausência em metáforas kitsch

Domingo fui ao parque
as crianças brincavam aos montes
corriam ao redor do lago, da fonte
e os patos, despreocupados.
No gramado logo ao lado
(já era quase noite)
debatiam as pessoas em roda
sobre o porquê de passarem
e tão logo já desaparecerem
os cometas, essas quase-estrelas,
que devem ser metáfora kitsch para alguma coisa,
(sugeriu alguém de camiseta colorida)
mas o céu não deu mais nada a entender.
Pensamos bem e concluímos sem dizer
que, fosse o que fosse aquilo diante de nós,
sentiremos profundamente sua ausência
se ousar não voltar
para que em brados a recebamos;
contaremos os dias sem dar certeza
de que ao cabo de mais sete dias
estará tudo lá como deixamos.
Outro camarada acendeu um cigarro.
Ele não soube dizer se, na verdade,
não era aquilo alguma outra coisa
que podia eventualmente tê-lo ocorrido,
talvez um satélite ou quiçá um meteorito.
Enfim lamentamos como tudo é tão fugaz
— se ao menos nos deixassem algo escrito!

(O que começou como devaneio
tornou-se disfarçadamente frequente desalento
que volta e meia surpreende-me desatento.
Há uma boa razão para tocar o violoncelo
e é uma pena que não tenhamos tudo agora
por maior que seja a fantasia de qualquer tentativa.
Serei claro: meu lirismo namorador, político
raquítico e sifilítico lastima sinceramente
essa ausência que ameaça tornar-se definitiva.)
--

Ausências são sempre superlativas:
http://mundoderascunhos.blogspot.com.br/2012/04/abwesenheit.html

segunda-feira, 9 de abril de 2012

É preciso ir bastante alto para ver além dos limites de Blumenau


No rádio do carro em que estávamos (em algum ponto incerto entre Jaraguá do Sul e Blumenau) tocavam músicas da minha bandinha canadense favorita, cujas letras eu conhecia de cor. Perguntei-me então (bastante tolo) o porquê desses caras não terem nascido em Santa Catarina também, e percebi que ere essa a deixa do momento para passear nas minhas misconceptions de mundo.

Cruzávamos o nosso pequeno enclave gringo-brasileiro, perdido no meio do vale, bem aqui onde não é possível de ver nada além dos morros. Neste lugar abrem-se estradas por entre altos montes de terra (cuja altura não pôde ser estimada por André), e amontoados de casinhas junto a largos galpões brotam conforme surgem terras mais planas.

Falo sobre as colônias catarinenses, que (segundo consta em um dos livros de Darcy Ribeiro) são filhas da inexplicável persistência dos imigrantes — algo só compreensível se pensarmos na angústia e penúria pela qual paralelamente passava a terra-mãe de outrora. (“A Europa já foi mais legal”, quem sabe não devem ter pensado.)

Por isso imagino clareiras sendo abertas a duras penas, somente para criar uma nova ideia de pátria bem no meio do mato, que chamariam ora de Brasil e ora de Brasilien. Bem aqui, onde mais tarde estaríamos confusos e divididos entre a tela de televisões (ou computadores) e nossa cara no espelho, gerações pareciam decidir involuntariamente o destino do estado em relação ao resto do país. Era muito mais importante saber em que pé estavam os brasileiros do lado de lá, e até que ponto podia-se continuar com velhos costumes. Diria até que nada do que nos preocupa agora era visto lá como problema, porque talvez se soubesse muito bem quem era quem, e o porquê de aqui estarmos sequer era mistério. As colônias de Santa Catarina eram irredutíveis, jamais um limbo dos estados ao redor.

De qualquer forma, eu ocupava o lugar do passageiro, e enquanto essa historinha toda passava por minha cabeça, decidíamos qual entrada da próxima cidade tomaríamos. Ocorreu-me então que não tenho muitos retratos de ancestrais na parede de casa. Mas voltei a distrair-me com as indústrias, porque depois de mais de uma hora rodando com o carro, deparamo-nos com enormes silos de arroz que uma das cidadezinhas abriga, e passei a observar o pessoal que ocupava os lados da rodovia. Perdi a conta de quantas bicicletas vi passar por bairros inteiros longe de tudo. Corríamos sob o calor do sol e embaixo da sombra de igrejas esparsas; estávamos definitivamente atravessando o vale, no interior de Santa Catarina.

Mas essa questão dos colonos é persistente, e acabo ficando nela. Arrisco-me a pensar que parte desse pessoal tornou-se um rude empresariado novo-rico, mesmo que simpático vez ou outra. Mas por que eram assim? O que fazia este pessoal depois de 1900? Depois que esqueceram de que o brasileirismo é inventado, tornaram-se brasileiros de verdade? Ser daqui é ser de lugar nenhum e de todos os lugares ao mesmo tempo? E enquanto o país descobria-se em 1922, época em que cariocas, mineiros e paulistas tomavam navios para qualquer lugar no estrangeiro afoitos em busca da antropofagia, o que se fazia entre o litoral e o oeste catarinense? Será que Vitor Meirelles ou Cruz e Souza estavam distantes demais? Parece que as primeiras incursões artísticas dos ex-colonos foram tão tímidas que ainda não se ouve nada a respeito, e os segredos de nossos avôs estão começando a ser escritos aos poucos, inspirados por autores reclusos e aspirantes a Lindolf Bell. Os novos-ricos não ligam, mas pode-se ver os primeiros suspiros poéticos abrigados nos túneis que há por debaixo das ruas blumenauenses — eles são tanto lenda quanto como distração no caminho para o shopping-center.

Está aí a resposta: distração. Isso, ou nosso grande problema é mesmo o amor próprio.

A falta de amor-próprio, na verdade, parece ser uma sugestão bastante conveniente. Isso significa que, por um lado, não temos voz própria porque temos vergonha do som dessa voz, e isso explicaria também o gosto de fluoxetina com ansiolíticos que o rio Itajaí-Açu deve ter.

Ainda assim, também é bom-senso sugerir que desconheço os autores daqui, e não saberia dizer o nome de mais de dez músicos, dez atores ou dez artistas plásticos. Então, por outro lado, quem sabe sou eu que estou a condenar meu próprio mundinho inventado, e só não sei mais discernir o que presta na televisão, achando que isso é reflexo real do que se passa lá fora. Paradoxalmente, o amor-próprio talvez falte mesmo a mim, e não ao resto das pessoas, que não se importam com a falta uma voz forte que diga de onde vem. "Vens de onde, gajo? Deve ser de Blumenau, com toda essa pompa, mas sem nada para dizer. Desliga a televisão e escreve logo teu livro."

--

Amor-próprio — exacerbação exagerada e pleonástica, tom de habitantes de cidades inventadas, ou bom-senso de viver sozinho. No-one has it all em:

quarta-feira, 28 de março de 2012

‘Ficar sem palavras’ em três tempos (pt. 1)

O., nascido em terras tupiniquins (mas português por excelência), de uns vinte e poucos anos, visitou-nos outro dia durante o expediente. Alto, moreno, de cabelos crespos, camisa listrada e sapatos muito rasgados, era um sujeito peculiar o suficiente para que eu achasse difícil de dizer o que me chamava mais a atenção. Claramente me soava estranho o sotaque, e também achei interessante a sua dificuldade em conter os gestos, porque ele expressava-se de forma que sempre sabíamos logo de cara o que lhe interessava e o que lhe era indiferente. Mas era principalmente peculiar como ele se perdia nas palavras.

Antes, um pouco mais de contexto: O. é antropólogo formado na França, e apareceu ali no meu “nine to five” diário com o pretexto de entrevistar o teuto-brasileiro mais importante daquelas bandas. Depois de um par de ligações, apareceu ofegante, simpático e atrasado, aceitou o copo de água antes de começar, e aí então sacou o gravador com o bloco de notas.

Depois de devidamente apresentados um ao outro, sentaram-se tête-à-tête à mesa diante de mim. O. nos olhou um pouco afoito e disse: “Bom, obrigado por me receber, peço desculpas pelo atraso. Acho que podemos começar, não?”

Ok, vá em frente, gajo. Estamos todos curiosos para ver o que tens aí.

O. notou nosso assentimento e buscou no ar o que deveria dizer. Seu entrevistado me olhou um pouco, e de repente veio a primeira pergunta: “o que significa, afinal, ser um imigrante alemão em Santa Catarina?” Recebo um olhar meio decepcionado do outro lado da mesa. Não era uma pergunta nova para o saxão, que revistou memórias e pôs-se a elaborar um pouco desconcertado vagas elucubrações acerca da sua vida recente por aqui.

Nosso visitante ouviu desatento, e folheava enquanto isso seu caderninho. Olhou o gravador e tornou a fitar-nos. Hesitante, persistiu no silêncio por alguns momentos, mas então subitamente pensou em alguma coisa e perguntou: “Mas... como você veio parar aqui?”

Novamente noto que não era o tipo de pergunta esperada. Nós estávamos acostumados com pessoas que não têm tempo a perder, como os bons e velhos engravatados munidos de jargão, briefings, estratégias e segundas intenções. Ficamos atordoados de ver alguém naquela salinha que precisava elaborar com calma cada frase. E, veja só, as próximas perguntas não foram diferentes: algo genérico, algo de senso-comum, algo aparentemente pouco produtivo. Não suficiente, O. sempre reagia lacônico às respostas, cheio de monossílabas, e às vezes também fazia anotações. Digamos, vi-o escrever um par de frases e palavras soltas. E isso foi tudo.

Depois de meia-hora, O. resolveu que já era o bastante. Levantou-se, agradeceu, cumprimentou-nos novamente e saiu. Fui levá-lo até a porta, e no caminho questionei-o rapidamente sobre o tema da pesquisa, o porquê de ter aparecido por lá e tal.

O. virou-se para mim. Vi que ele tentou simplificar as ideias antes de começar a falar. Enquanto ia saindo pela porta da frente, explicou-me como pôde alguma coisa sobre o vínculo emocional com o idioma, o nacionalismo alemão e as implicações morais e comportamentais disso... bom, sei lá. Não saberia transcrever o que ele me disse, mas foi o momento de ver como esse cara de sapatos muito rasgados sabia exatamente do que estava falando. Não importava sua falta de articulação de minutos antes. Vi passando por seus olhos — que corriam de um lado para o outro enquanto ia descrevendo os propósitos da tese, isso, isto e mais aquilo — memórias sobre a enorme pilha de livros que o já devorara, as muitas aulas, discussões, e incontáveis horas gastas em alguma biblioteca de Paris dedicando pensamento ao porquê dos alemães que emigravam e amavam seu indelével Deutsch.

Enfim, depois acabei entendendo uma daquelas frases de livrinho de citação: as pessoas que mais têm o que dizer às vezes realmente são aquelas que mais tropeçam nas próprias palavras. Ou: não ter palavras nem sempre significa não ter o que dizer.

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Palavras que têm alma:

segunda-feira, 19 de março de 2012

O salmo 23 no escuro

Texto inspirado vagamente
por uma conversa com M.R.
— e mais uma série de coisas.

Estou sentado diante de uma senhora, cujo rosto de poucas rugas, bastante idade e feições claramente europeias, denotará em alguns instantes doce seriedade e algo de fascinação. Ela aperta um terço em sua mão direita, e ajeita os óculos redondos, levemente tortos. A sala é escura, e na verdade tudo o que eu consigo notar realmente é a escuridão. As sombras em seu rosto revelam mais que as partes iluminadas. Também são quase pretos os tons pastéis de sua roupa simples e pudica.

Entre nós há uma mesa. Minha cadeira é apertada, então me ajeito impaciente. Ela posta a mão esquerda sobre a mesa, tamborilando os dedos. Inclinando a cabeça e sorrindo interessada, pergunta-me:

“Me diz, então: o que te fascina?”

Não é uma pergunta simples. A sala em que estamos também tem uma janela. Como é noite e o céu está nublado, há uma claridade bastante sutil entrando. Isso significa que não vejo nada lá fora além de um grande e infindável preto acima do horizonte, mas graças a isso me ocorre oportunamente uma resposta aceitável: digo-a que me fascinam as estrelas.

Sra. R. me olha cética, mas não perde a pose nem o sorriso. Põe sua mão no queixo e deixa subentendida a pergunta. “Bom, gosto da ideia de olhar para cima à noite e ver tantos retratos de não sei quantos anos atrás”, complemento. Ela abranda o sorriso.

“Você sabe, as estrelas estão longe o suficiente para que nós apenas consigamos vê-las milhões de anos depois que suas luzes tenham sido emitidas”, eu digo, sentindo-me como Marcelo Gleiser. Parece que estou no Discovery Channel, falando pela centésima vez sobre a velocidade da luz e os irmãos que envelhecem diferentemente porque um deles está em uma espaçonave rápida à beça.

“E por causa disso,” continuo enfático, “estamos olhando para a fotografia — não literalmente, é claro — daquilo que as estrelas costumavam ser. E isso me fascina. As estrelas nesse antigo manto de escuridão fazem um belo jogo de luzes com o que está aqui embaixo”.

“Não sei bem se jogo de luzes é o termo certo aqui. Mas entendo o que você está querendo dizer. Também acho bacana,” ela me diz. No entanto, muda de assunto, e aproveitando a deixa, Sra. R. começa a contar-me uma parábola. Nessa parábola, a luz (“quiçá uma dessas estrelas que você tanto gosta”, diz ela de passagem) chama um homem feito de sal para dentro do mar. O homem de sal vai andando para dentro da água, tentando alcançar essa luz que continua a chamá-lo, ainda que isso o dissolva aos poucos. O homem obviamente se desfaz inteiramente depois de algum tempo, e termina por integrar o mar, junto com a luz.

“E a luz, veja só que incrível, é Deus.” Seu sorriso manso não se desfaz. “Não é fascinante?”

Não entendo a parábola. Olho discretamente o relógio, mas ele está parado. Também não me lembro como fui parar ali e fico desconfortável novamente. Penso até por um instante que é muito estranho inclusive que estivéssemos em uma saleta tão escura. Mas a historinha força-me a voltar-lhe a atenção, e questiono-a sobre a moral por trás daquilo.

“Ora, não é claro?”
Não, não é tão claro. Faço a mesma cara que meu cachorro faz quando converso com ele.
“O homem de sal tornou-se um com Deus. E isso é todo o necessário.”
”Mas ele deixou de existir—“
“Por certo, mas não importa. Ele incorporou-se ao amor infinito. Ihm wird nichts mangeln.”

Entendo qual é o seu ponto, mas não tenho certeza do que ela está tentando me dizer. Ela já sabe que acredito em nada. Ou, como lhe dissera pouco antes, tenho muita fé na inexistência de qualquer coisa (além do fundo de nossas pálpebras) quando fechamos nossos olhos. Digo-a que não sei se me interessa ficar imerso na escuridão do fundo do oceano, por maior que seja o amor a me acompanhar.

“Parece-me que você não está imaginando isso corretamente. Suponhamos que você fosse o homem de sal. Quando você estivesse enfim dentro do mar, a escuridão seria eigentlich um clarão acolhedor. Digamos, um branco fosco.”

Lembro-me de quando assisti “Ensaio Sobre a Cegueira”. Esse branco que ela descreve me faz pensar em algum tipo de cegueira metafórica para aceitação, mais ou menos como na imagem que passa a adaptação em filme. Sei lá, provavelmente não era disso que Saramago estava falando. Ainda assim, qualquer que seja a metáfora, não é como se me fosse estranha a fé incondicional que Margarete (eis seu primeiro nome, lembro de repente) demonstra. Talvez eu quisesse a sentir também.

„Und ob ich schon wanderte im finstern Tal, fürchte kein Unglück—“, ela entoou, e prontamente complementei:
„Denn du bist bei mir.“

Suas feições estão denotam como ela está satisfeita. Conheço, afinal, o salmo 23. Deve estar pensando que está diante de um crente relutante, apesar das justificativas. Minhas frases seguintes giram em torno de certas influências culturais que eu teria recebido; digo-a que, apesar da aparente relutância, ter crescido em um ambiente favorável a esse quase-cristianismo faz com que qualquer ideia de um pastor conduzindo minha alma atormentada — apesar de ser classe média branquinha e não ter muito com o que me atormentar, como observaria um grande amigo meu — seja uma ideia bem reconfortante. Pendão da esperança mesmo é aquela cruz pequeninha que ela ainda segura na mão direita.

“Se é que há um vale das trevas, ou da escuridão, prefiro pensar que ainda estejamos nele. Quer dizer, a inconsistência é bastante assustadora, mas tenho certeza que há formas também interessantes de amor sem que nos dissolvamos no mar”, falo meio que por falar. Antes que ela reaja, mudo de assunto:

“Amor também é algo fascinante.” Ela exclama contente em concordância, mas permanece sem dizer nada, apenas ouvindo-me falar. “Aliás, fascinantes mesmo são as pessoas.”

Margarete contém sua reação e espera pelo resto, ao que continuo: “Fico sempre impressionado de imaginar que certos animais (porque somos animais, mesmo com o polegar opositor e o telencéfalo altamente desenvolvido) sabem contrair determinados músculos do rosto para (propositalmente) sorrir. Isso diz muito para os outros animais que também têm essa capacidade. Há uma série de coisas para se tirar daí, como ver a paixão com que se enxerga o sorriso alheio—”

Eu paro no meio da frase, hesitando ao escolher as próximas palavras, e ela se aproveita da minha pausa:
“Porque afinal o amor é um pouco disso, não é?”

Não sei bem. Se saímos de definições complicadas acerca da pós-existência e Deus (algo que normalmente rende uma conversa difícil e aborrecida), estávamos agora em terreno ainda mais pantanoso. Repasso na cabeça o punhado de concepções a respeito de amor enquanto ela elabora a próxima frase, e acabo por concluir que não é algo feito de sorrisos, ainda que sorrisos sejam deveras agradáveis. Amor, pensando bem, é uma palavra muito pesada. Sorrisos são leves demais para isso.

“Acho que amor,” — seu tom é didático — “acontece quando você percebe a perfeição daquela pessoa que é imperfeita.”

“É, acho que é isso mesmo”, respondo. Assisti certa vez a uma entrevista dada por Jacques Derrida, mais ou menos sobre a mesma coisa, mas me faltam palavras para elaborar alguma coisa concreta e continuar. Estamos agora sorrindo amigavelmente um para o outro, um pouco sem o que dizer, mas dois gatos começaram a brigar lá fora e tiraram nosso foco da conversa. Os miados são muito estridentes.

“Só é uma pena que isso normalmente não seja tão simples”, digo quando os gatos ficam de novo em silêncio, procurando terminar o assunto e quem sabe a conversa. “Quero dizer, uma das minhas palavras favoritas em alemão é Leidenschaft, que significa ‘paixão’ em português.” Ela acena com a cabeça, sempre com uma expressão passiva e agradável.

“E gosto muito dessa palavra pelo jeito em que a conceberam. Veja, nunca olhei “Schaft” no dicionário, mas suponho que esteja de alguma forma ligada a um conjunto de alguma coisa. Não é? Porque se “Nachbar” é vizinho e “Nachbarschaft” é vizinhança, então o “-schaft” deve implicar definitivamente no coletivo da primeira palavra”.

“E se ‘Leiden’ é sofrimento em português,” — eu continuo — “você suporia sem dificuldade que ‘Leidenschaft’ deve ser um monte de sofrimento ou qualquer coisa dessa natureza. Mas ‘Leidenschaft’ significa ‘paixão’, veja só. Não me parece uma concepção somente germânica a respeito do significado de paixão." Ela passou a piscar um pouco mais rápido, seguindo o raciocínio. Levanta uma sobrancelha, e então termino, gesticulando um pouco demais.

“A paixão, portanto, é um monte de sofrimento (independentemente do grau desse sofrimento); mas é paixão. Na escuridão está o sentimento mais incrível — e fascinante — de que dispomos.”

E a escuridão, que já era forte na saleta em que estávamos, acabou por tomar-me completamente. Não saberia dizer quanto tempo isso levou; talvez uma hora, talvez algumas semanas, talvez uma vida inteira. Só sei que, passado esse ínterim, as sombras enfim cobriram toda a extensão do rosto de Sra. R. e não vi mais nada.

Meu último pensamento ainda pairou sobre a conversa, talvez deixando bastante claro que o amor (ou a paixão, que não são a mesma coisa, mas são partes de um mesmo todo) são contradições bastante complexas. Leidenschaft é um perfeito exemplo disso.

Enfim quis dizer em alemão, mas só me veio em inglês:
we must reinvent love.

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Diferentes concepções de escuridão:
http://mundoderascunhos.blogspot.com.br/2012/03/quarter-to-three.html

*Sort of related: http://youtu.be/dj1BuNmhjAY