quarta-feira, 28 de março de 2012

‘Ficar sem palavras’ em três tempos (pt. 1)

O., nascido em terras tupiniquins (mas português por excelência), de uns vinte e poucos anos, visitou-nos outro dia durante o expediente. Alto, moreno, de cabelos crespos, camisa listrada e sapatos muito rasgados, era um sujeito peculiar o suficiente para que eu achasse difícil de dizer o que me chamava mais a atenção. Claramente me soava estranho o sotaque, e também achei interessante a sua dificuldade em conter os gestos, porque ele expressava-se de forma que sempre sabíamos logo de cara o que lhe interessava e o que lhe era indiferente. Mas era principalmente peculiar como ele se perdia nas palavras.

Antes, um pouco mais de contexto: O. é antropólogo formado na França, e apareceu ali no meu “nine to five” diário com o pretexto de entrevistar o teuto-brasileiro mais importante daquelas bandas. Depois de um par de ligações, apareceu ofegante, simpático e atrasado, aceitou o copo de água antes de começar, e aí então sacou o gravador com o bloco de notas.

Depois de devidamente apresentados um ao outro, sentaram-se tête-à-tête à mesa diante de mim. O. nos olhou um pouco afoito e disse: “Bom, obrigado por me receber, peço desculpas pelo atraso. Acho que podemos começar, não?”

Ok, vá em frente, gajo. Estamos todos curiosos para ver o que tens aí.

O. notou nosso assentimento e buscou no ar o que deveria dizer. Seu entrevistado me olhou um pouco, e de repente veio a primeira pergunta: “o que significa, afinal, ser um imigrante alemão em Santa Catarina?” Recebo um olhar meio decepcionado do outro lado da mesa. Não era uma pergunta nova para o saxão, que revistou memórias e pôs-se a elaborar um pouco desconcertado vagas elucubrações acerca da sua vida recente por aqui.

Nosso visitante ouviu desatento, e folheava enquanto isso seu caderninho. Olhou o gravador e tornou a fitar-nos. Hesitante, persistiu no silêncio por alguns momentos, mas então subitamente pensou em alguma coisa e perguntou: “Mas... como você veio parar aqui?”

Novamente noto que não era o tipo de pergunta esperada. Nós estávamos acostumados com pessoas que não têm tempo a perder, como os bons e velhos engravatados munidos de jargão, briefings, estratégias e segundas intenções. Ficamos atordoados de ver alguém naquela salinha que precisava elaborar com calma cada frase. E, veja só, as próximas perguntas não foram diferentes: algo genérico, algo de senso-comum, algo aparentemente pouco produtivo. Não suficiente, O. sempre reagia lacônico às respostas, cheio de monossílabas, e às vezes também fazia anotações. Digamos, vi-o escrever um par de frases e palavras soltas. E isso foi tudo.

Depois de meia-hora, O. resolveu que já era o bastante. Levantou-se, agradeceu, cumprimentou-nos novamente e saiu. Fui levá-lo até a porta, e no caminho questionei-o rapidamente sobre o tema da pesquisa, o porquê de ter aparecido por lá e tal.

O. virou-se para mim. Vi que ele tentou simplificar as ideias antes de começar a falar. Enquanto ia saindo pela porta da frente, explicou-me como pôde alguma coisa sobre o vínculo emocional com o idioma, o nacionalismo alemão e as implicações morais e comportamentais disso... bom, sei lá. Não saberia transcrever o que ele me disse, mas foi o momento de ver como esse cara de sapatos muito rasgados sabia exatamente do que estava falando. Não importava sua falta de articulação de minutos antes. Vi passando por seus olhos — que corriam de um lado para o outro enquanto ia descrevendo os propósitos da tese, isso, isto e mais aquilo — memórias sobre a enorme pilha de livros que o já devorara, as muitas aulas, discussões, e incontáveis horas gastas em alguma biblioteca de Paris dedicando pensamento ao porquê dos alemães que emigravam e amavam seu indelével Deutsch.

Enfim, depois acabei entendendo uma daquelas frases de livrinho de citação: as pessoas que mais têm o que dizer às vezes realmente são aquelas que mais tropeçam nas próprias palavras. Ou: não ter palavras nem sempre significa não ter o que dizer.

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Palavras que têm alma:

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