quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Paul Verlaine - Clair de Lune

Sua alma é uma paisagem escolhida
aonde vão mascarados e bergamascos
a tocar o alaúde e dançar e quase
tristes debaixo de seus trajes fantásticos.

Todos cantam num tom menor
sobre amor vitorioso e a vida oportuna
Eles não parecem crer em sua felicidade
e sua canção se mistura ao luar.

Ao calmo luar, triste e belo,
que faz sonhar as avas nas árvores
e os jatos d'água soluçarem em êxtase,
Altas fontes esbeltas entre estátuas de mármore.

***

Votre âme est un paysage choisi
Que vont charmant masques et bergamasques
Jouant du luth et dansant et quasi
Tristes sous leurs déguisements fantasques.

Tout en chantant sur le mode mineur
L'amour vainqueur et la vie opportune
Ils n'ont pas l'air de croire à leur bonheur
Et leur chanson se mêle au clair de lune,

Au calme clair de lune triste et beau,
Qui fait rêver les oiseaux dans les arbres
Et sangloter d'extase les jets d'eau,
Les grands jets d'eau sveltes parmi les marbres.


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

"If", de Roger Waters

If I were a swan, I'd be gone.
If I were a train, I'd be late.
And if I were a good man,
I'd talk with you
More often than I do.

- "Atom Heart Mother" (1970)

“As regras e formas do discurso prático geral”, por Robert Alexy


1. AS REGRAS FUNDAMENTAIS

(1.1) Nenhum falante pode contradizer-se.
(1.2) Todo falante só pode afirmar aquilo em que ele mesmo acredita.
(1.3) Todo falante que aplique um predicado F a um objeto A deve estar disposto a aplicar F também a qualquer objeto igual a A em todos os aspectos relevantes.
(1.3’) Todo falante só pode afirmar os juízos de valor e de dever que afirmaria dessa mesma forma em todas as situações em que afirme que são iguais em todos os aspectos relevantes.
(1.4) Diferentes falantes não podem usar a mesma expressão com diferentes significados.

2. AS REGRAS DE RAZÃO

(2) Todo falante deve, se lhe é pedido, fundamentar o que afirma, a não ser que possa dar razões que justifiquem negar uma fundamentação.
(2.1) Quem pode falar pode tomar parte no discurso.
(2.2)
(a) Todos podem problematizar qualquer asserção.
(b) Todos podem introduzir qualquer asserção no discurso.
(c) Todos podem expressar suas opiniões, desejos e necessidades.

3. AS REGRAS DA CARGA DA ARGUMENTAÇÃO

(3.1) Quem pretende tratar a uma pessoa A de maneira diferente de uma pessoa B está obrigado a fundamentá-lo.
(3.2) Quem ataca uma proposição ou uma norma que não é objeto da discussão deve dar uma razão para isso.
(3.3) Quem aduziu um argumento está obrigado a dar mais argumentos em caso de contra-argumentos.
(3.4) Quem introduz no discurso uma afirmação ou manifestação sobre suas opiniões, desejos ou necessidades que não se apresentem como argumento a uma manifestação anterior tem, se lhe for pedido, de fundamentar por que tal manifestação foi introduzida na afirmação.

4. AS FORMAS DE ARGUMENTO
(...)

5. AS REGRAS DE FUNDAMENTAÇÃO

(5.1.1) Quem afirma uma proposição normativa que pressupõe uma regra para a satisfação dos interesses de outras pessoas deve aceitar as consequências de dita regra também no caso hipotético de ele se encontrar na situação daquelas pessoas.
(5.1.2) As consequências de cada regra para a satisfação dos interesses de cada um devem ser aceitas por todos.
(5.1.3) Toda regra deve ser ensinada de forma aberta e geral.
(5.2.1) As regras morais que servem de base às concepções morais do falante devem resistir à comprovação de sua gênese histórico-crítica. Uma regra moral não resiste a tal comprovação:
a) Se originariamente se pudesse justificar racionalmente, mas perdeu depois sua justificação, ou
b) Se originariamente não se pôde justificar racionalmente e não se podem apresentar também novas razões suficientes.
(5.2.2) As regras morais que servem de base às concepções morais do falante devem resistir à comprovação de sua formação histórica individual. Uma regra moral não resiste a tal comprovação se se estabeleceu com base apenas em condições de socialização não justificáveis.
(5.3) Devem ser respeitados os limites de realizabilidade faticamente dados.

***

Tirei daqui:
- ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação jurídica : a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica / Robert Alexy ; tradução Zilda Hutchinson Schild Silva ; revisão técnica da tradução e introdução à edição brasileira Claudia Toledo. – 3.eb. – Rio de Janeiro : Forense, 2011, pp. 287 a 289.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

"Shake the Dust", de Anis Mojgani


This is for the fat girls.
This is for the little brothers,
This is for the school yard wimps and the childhood bullies that tormented them,
For the former prom queen and for the milk crate ball players,
For the nighttime cereal eaters,
And for the retired elderly Walmart store front door greeters:
Shake the dust.

This is for the benches and the people sitting upon them
For the bus drivers who drive a million broken hymns
For the men who have to hold down three jobs simply to hold up their children
For the nighttime schoolers
And for the midnight biker riders who are trying to fly:
Shake the dust.

This is for the two year olds
Who cannot be understood because they speak half English and half God
Shake the dust
For the boys with the beautiful sisters
Shake the dust
For the girls with the brothers who are going crazy
For those gym class wallflowers and the twelve year olds afraid of taking public showers
For the kid who is always late to class because he forgets the combination to his locker
For the girl who loves somebody else:
Shake the dust.

This is for the hard men who want love but know that it won't come
For the ones who are forgotten
The ones the amendments do not stand up for
For the ones who are told speak only when you are spoken to
And then are never spoken to
Speak every time you stand so you do not forget yourself
Do not let one moment go by that doesn't remind you
That your heart, it beats 900 times every single day
And that there are enough gallons of blood to make everyone of you oceans
Do not settle for letting these waves that settle
And for the dust to collect in your veins
This is for the celibate pedophile who keeps on struggling
For the poetry teachers and for the people who go on vacation alone
For the sweat that drips off of Mick Jaggers' singing lips
And for the shaking skirt on Tina Turner's shaking hips
For the heavens and for the hells through which Tina has lived
This is for the tired and for the dreamers,
For those families that want to be like the Cleavers with perfectly made dinners
And songs like Wally and the Beaver
This is for the bigots, for the sexists, and for the killers
And for the big house pin sentenced cats becoming redeemers
And for the springtime that somehow seems to show up right after every single winter,

This is for everyone of you
Make sure that by the time the fisherman returns you are gone
Because just like the days I burn at both ends
And every time I write, every time I open my eyes
I'm cutting out parts of myself simply to hand them over to you

So shake the dust.
And take me with you when you do for none of this has ever been for me
All that pushes and pulls
And pushes and pulls
And pushes and pulls
It pushes for you
So, grab this world by its clothespins
And shake it out again and again
And jump on top and take it for a spin
And when you hop off shake it again
For this is yours, this is yours
Make my words worth it
Make this not just some poem that I write
Not just some poem like just another night that sits heavy above us all
Walk into it, breathe it in, let it crash through the halls of your arms
Like the millions of years of millions poets
Coursing like blood, pumping and pushing
Making you live, shaking the dust
So when the world knocks at your front door
Clutch the knob tightly and open on up
And run forward and far into its widespread, greeting arms
With your hands outstretched before you
Fingertips trembling, though they may be.

https://www.youtube.com/watch?v=0qDtHdloK44

"Necrológio dos desiludidos do amor", de Carlos Drummond de Andrade


Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Ó, quanta matéria para os jornais.

Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.
Pum pum pum — adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.

Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia.

Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e segunda classe).

Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.


terça-feira, 10 de junho de 2014

Todos os amores são tóxicos



O lado bom de ter priminhos que são mais ou menos velhos, ali naquele limiar caótico no fim da infância, são as suas conversas quase lúcidas. Exemplo memorável:

— E se o oxigênio na verdade for venenoso, mas ele demora o tempo de uma vida inteira para matar?
Silêncio e reticências. O pequeno, loirinho e com cara de quem está cheio das ideias, olha confuso para mim. É isso mesmo?

Vamos ao nosso oráculo. Sim, é bem assim mesmo, pelo que diz o Google. Quer dizer, mais ou menos. Aparentemente isso se chama teoria dos radicais livres, mas vai explicar isso para uma criança. Ou uma quase criança.
 
— Acho que vocês não precisam se preocupar com isso agora. Não querem jogar Xbox? Estou com dois controles—

Nem termino de dizer a frase e eles já começam a trocar tapas para ver quem joga primeiro, ainda que tenhamos dois controles. Em tempo suficiente ficamos todos distraídos com a partida, mas agora respiro com cautela. Sinto cada suspiro me roubar um pouco de vida. (E se a vida valer tanto quanto a companhia dos priminhos, então ela deve ser mesmo gasta com parcimônia, mas essa é outra história.)

***

Suspiros. Profundos suspiros.

Eis o dia dos namorados, não muito tempo depois dessa conversa. Sabemos que é junho nas ruas movimentadas do centro da cidade e nos centros comerciais: de um lado, vê-se buquês de rosas e gérberas, presentes elaborados, e falas ensaiadas. A ocasião pede romantismo, portanto os suspiros são apaixonados.
 
De outro lado, o ar é contaminado pelos suspiros céticos e quase aborrecidos de veteranos que colecionam nomes de amantes que não deram certo. O dia dos namorados é talvez ocasião para fingir que o amor é uma invenção, ou para juntar-se a outros veteranos para catalogar desamores e analisá-los minuciosamente. 

E no meio de tudo isso, os entendidos debatem os relacionamentos que valem a pena ou não. Os relacionamentos coloridos, cheios de energia, e que são sopros de vitalidade — e os tóxicos. 

***

Uma de minhas caronas se torna um desses debates:

— Sabe o que é, João? O problema é que esse meu “ex” aí achava que a felicidade dele dependia de mim. Isso me sugava.

Estou no banco de trás, então posso deixar a motorista e o carona responderem por mim. Sei que é uma boa ideia, porque o carona sente profunda empatia.

— Foda.

— Pois é. Não tinha mais como. Eu já nem respondia mais as mensagens dele.

Os bancos do carro ouvem comigo a versão nova de uma velha história. Desamores tão sem sentido, e a gente assim tão down.

— Mas também não tem como continuar um relacionamento assim de qualquer forma.

— Não, não tem. Era tudo meio tóxico. 

“Tóxico”, ela diz. Lembro dos meus priminhos, e penso naquela história do oxigênio. Talvez os relacionamentos não sejam tóxicos. Quem sabe o amor que os nutre seja, assim como o ar que a gente respira, e os relacionamentos apenas envelhecem. As mudanças e intempéries acumuladas viram rugas na paixão cansada e com olheiras, mas ela permanece bela.

A motorista e o carona se calam. 

Ouço suspiros, e quero alertá-los dos males velados e silenciosos do ar que respiramos, mas o guardo para mim. Também não alerto ninguém para os males do amor, sempre assim tão tóxico, porque de nenhum outro modo sufocar é tão libertador.  
 
E se até o oxigênio, indiscutivelmente vital, também nos consome e nos tira a vida depois de tempo suficiente, então só nos resta flertar com sua sutil toxicidade — e esperar que dure para sempre o ar que enche nossos pulmões.

Arcade Fire - The Suburbs & The Suburbs (continued)

***

1.

In the suburbs I
I learned to drive
And you told me we'd never survive
Grab your mother's keys we're leavin'

(...)

So can you understand?
Why I want a daughter while I'm still young
I wanna hold her hand
And show her some beauty
Before this damage is done

But if it's too much to ask, it's too much to ask
Then send me a son

Under the overpass
In the parking lot we're still waiting
It's already passed
So move your feet from hot pavement and into the grass
Cause it's already passed
It's already, already passed!

Sometimes I can't believe it
I'm movin' past the feeling

In my dreams we're still screamin'
We're still screamin'

***

2.

If I could have it back
All the time that we wasted
I'd only waste it again
If I could have it back
You know I'd love to waste it again
Waste it again and again and again

(...)

segunda-feira, 5 de maio de 2014

"Direct Orders", by Anis Mojgani

You have been given a direct order to rock the fuck out.
Rock out like you were just given the last rock and roll record on earth and the minutes are counting down to flames.
Rock out like you just won both showcase showdowns.
Rock out like the streets are empty except for you, your bicycle, and your headphones.
Rock out like your lips, which are placed onto a breakdancing muse with legs that go all the way up.

Rock out like Publishers Clearing House is ringing your front door.
Rock out like you’ll never have to open a textbook again.
Rock out like you get paid to disturb the peace.
Rock out like music is all that you got.
Rock out like you’re standing on a rooftop and the city’s as loud and glowing as a river flowing below you.

Rock out like the plane is going down, and there are 120 people on board, and 121 parachutes.
Rock out like the streets and the books are all on fire and the flames can only be extinguished by doin’ the electric slide.
Rock out like it’s Saturday afternoon and Monday was a national holiday.
Rock out like somebody’s got a barrel pointed at your temple saying ‘Rock out like your life depended on it, fool,‘ because it does.

Rock out like your eyes are fading but you still got your ears.
But you don’t know for how long so rock out like 5 o’clock time, meant pop-and-lock time.
Rock out like you got a pants full of tokens and nothing to do but everything.
Rock out like you are the international ski-ball champion of the entire universe.
Rock out like you just escaped an evil orphanage to join a Russian circus.

Rock out like your hero is fallen and you are spinning your limbs until they burst into a burning fire of remembrance.
Rock out like you are enslaved in the south and dancing is all that you have to know who you are.
Rock out like your dead grandfather just came back to take a drive with you in your new car.
 Rock out like the table is full.

Rock out like the neighbors are away.
Rock out like the walls won’t fall but, damn, you’re going to die trying to make them.
Rock out like the stereo’s volume knob is the figure 8 of infinity on it instead of merely numbers.
Rock out like it’s raining outside and you’ve got a girl to run through it with.

Rock out like you’re playing football! Football in the mud and your washing machine is not broken.
Rock out like you threw your window open on your honeymoon because you want the whole world to know what love is.
Rock out like you just got a book published.
Rock out like you just went to your high school reunion to find everyone, even the women, are all overweight and bald, except for the former homecoming queen, who has just been divorced by her impotent husband and who only has eyes for... YOU!

Rock out like you just got a date with Heidi Klum.
Rock out like a shadow of a man passes behind you, drops you to your knees.
You’re buckling in sweat, cold metal’s pushed to your forehead, the trigger’s pulled and the gun jams. Rock out like you got an empty appointment book, and a full tank of gas.
Rock out like Jimi has returned carrying brand new guitar strings.

Rock out like the mangos are in season.
Rock out like the record player won’t skip.
Rock out like this was the last weekend, like these were the last words, like you don’t ever want to forget how.

 

terça-feira, 29 de abril de 2014

Linhas mortas

Deadlines,
Deadlines,
Deadlines.

Gatos assalariados,
leões da receita,
e tigres de bengala:

Felinos corporativos
têm vidas demais.


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

"Ghost of Corporate Future", por Regina Spektor


A man walks out of his apartment,
It is raining, he's got no umbrella
He starts running beneath the awnings,
Trying to save his suit,
Trying to save his suit.
Trying to dry, and to dry, and to dry but no good

When he gets to the crowded subway platform,
He takes off both of his shoes
He steps right into somebody's fat loogie
And everyone who sees him says, "Ew."
Everyone who sees him says, "Ew."

But he doesn't care,
'Cause last night he got a visit from the
Ghost of Corporate Future
The ghost said, "Take off both your shoes
Whatever chances you get
Especially when they're wet."

He also said,
"Imagine you go away
On a business trip one day
And when you come back home,
Your children have grown
And you never made your wife moan,
Your children have grown
And you never made your wife moan."

"And people make you nervous
You'd think the world is ending,
And everybody's features have somehow started blending
And everything is plastic,
And everyone's sarcastic,
And all your food is frozen,
It needs to be defrosted."

"You'd think the world was ending,
You'd think the world was ending,
You'd think the world was ending right now.
You'd think the world was ending,
You'd think the world was ending,
You'd think the world was ending right now."

"Well maybe you should just drink a lot less coffee,
And never ever watch the ten o'clock news,
Maybe you should kiss someone nice,
Or lick a rock,
Or both."

"Maybe you should cut your own hair
'Cause that can be so funny
It doesn't cost any money
And it always grows back
Hair grows even after you're dead"

"And people are just people,
They shouldn't make you nervous.
The world is everlasting,
It's coming and it's going.
If you don't toss your plastic,
The streets won't be so plastic.
And if you kiss somebody,
Then both of you'll get practice."

"The world is everlasting
Put dirtballs in your pocket,
Put dirtballs in your pocket,
And take off both your shoes.
'Cause people are just people,
People are just people,
People are just people like you.
People are just people,
People are just people,
People are just people like you."

The world is everlasting
It's coming and it's going
The world is everlasting
It's coming and it's going

It's coming and it's going


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Una invitación para entrar a tu vida (ou ‘o eclipse de olhos verdes’)

Todas as quintas-feiras, depois do almoço e antes de voltar ao escritório, nós vamos ao mesmo café onde o brigadeiro é servido de graça com o espresso, e onde o garçonzinho de gravata borboleta se confunde jocosamente com pronomes de tratamento. Não, é sério: uma parte da nossa diversão é receber o ‘bom dia, senhores’ dele quando entramos, para depois irmos embora com o seu ‘valeu bróder’ meio gaiato.
Enfim, eis que Lotte entra no café de novo. Observando-a se aproximar da mesa, ouço, como nas outras semanas, o desenrolar de todas as palavras que eu direi, assim como todas as respostas que ela me dará. A cena desenreda-se de imediato na minha cabeça — de novo.
Oi, eu vou dizer.

Olá, ela vai dizer com tom doce.
E aí passaremos a conversar, e será bem agradável. Vou elogiar o seu brinco e a blusa lilás. Aí ela dirá algo pequeno, inócuo, alguma sacadinha de me fazer sorrir de lado, algo sobre mim, algo que eu ainda não havia contado a ela. Alguma coisa impossível.

Pois então. Fico aqui sentado, mexendo com a colherinha meu café amargo e observando-a debruçada no balcão e convenientemente inclinada. Café com leite e bombom de morango.
“Café com leite e bombom de morango”, ela diz, como quem quase ordena e comanda a senhorinha no caixa. Dá um passo ao lado para que a fila ande, e folheia uma das revistas sobre a mesinha onde fica o açúcar, os talheres de plástico e os guardanapos.
O mundo, quase como um relógio. Aperta-se o botão, troca-se mais um filtro da máquina de café, e açúcar ou adoçante—

“Açúcar ou adoçante?”
“Nenhum dos dois, obrigado.”
“Ok, querida.”
As coisas acontecem, tudo na sua ordem, com os botões apertados, resultados antecipados e os padrões perceptíveis, de tal modo que, se você não jogar uma pedra nas engrenagens ou forçar a barra, tudo vai funcionar perfeitamente. Não haverá nada que o impeça de dissimular que tem algo profunda e fundamentalmente errado no meio de tudo isso.

Mas é besteira.
É besteira porque Lotte voltou a se sentar. Lotte, com seu café com leite e o bombom comido em mordidas ínfimas.
Charlotte é seu nome inteiro, na verdade. Não conheço ninguém como Charlotte, tampouco outra pessoa com o mesmo nome, para falar a verdade. Deixei-me enlevar tantas vezes pela pequena mancha redonda preta que orbita a íris castanho-esverdeada ao redor de sua pupila, que já não creio mais em outro destino que não o fundo de seus olhos. E também o sorriso desenhado, contraponto às mechas de cabelo castanhas e a pele pálida. Ah, Charlotte, que nem sabe disto, mas como senti sua falta.
Hoje o assunto é palpitante. Ela mexe a bolsa, descuidada com a conversa, perguntando o que acho sobre ‘amor’. Assim mesmo, sei lá, ‘o que você acha sobre amor’. Logo em uma quinta-feira tão atribulada. Minha cabeça continua no arquivo do escritório e na cara amarrada dos clientes céticos, e eu tendo que pensar em algo inteligente para dizer.
Eu não digo nada muito de imediato, então Lotte volta sua atenção para a silenciosa superfície da mesa, já que cansou de procurar algo que evidentemente não está na bolsa. Para dar uma resposta, vejo que meu lado direito cartesiano um tanto boring toma a frente, porque desenho no guardanapo um gráfico com ‘sentimento’ e ‘’tempo’ nos eixos, traçando curvas a que chamo de ‘paixão’ e ‘amor’. Uma coisa sucede a outra naturalmente, não?
“Não, não; ‘ tá entendendo tudo errado. Amor não segue muito uma lógica. E mais importante, amor não é um sentimento.” (E ela não liga se a conversa não nos levará a lugar nenhum, se é clichê ou pretensiosa). “Amor são ações”, ela afirma com tom muito entendido e didático. “E não dá pra amar assim sem fazer nada.”
Ela morde o pedacinho que resta do bombom, e termina o café. Amor são ações, veja só.
“Vai mais um docinho aí, senhores?”, pergunta o garçom, que surge como um Mestre dos Magos de gravata borboleta e munido de bandeja de metal. Lógico —sempre tem mais espaço para um docinho, e é o que dou a entender com minha cara de formiga sorridente.
Já é quase hora de ir embora, ao menos para evitar que o papel colado na parede da sala onde trabalho, indicando os horários de entrada e saída dos funcionários, explicite ao chefinho no final do mês que estendi o almoço além da conta. Confiro o relógio do celular.
Vamo aí, senhores?”, Lotte pergunta.
Sim, vamos. Ela sorri, e essa fração de segundos se arrasta um pouco mais do que todas as outras, como se o tempo ficasse meio devagar de supetão. Eu vou sorrir de volta, ela vai sorrir mais um pouco, a gente vai se levantar pra pagar e aceitar a balinha de canela que nos oferecerão no caixa. Charlotte se despedirá sem dizer nada, só com os seus olhos e o sublime eclipse interno da íris esquerda, e vou dizer ‘até semana que vem’. Ela vai dizer ‘até’, daremos uma pausa em silêncio, e aí iremos embora em direções opostas, cada um com uma música na cabeça.
“Amor não é um sentimento”, e não é nem a conclusão dela que surpreende tanto, e sim como ou quando chegamos nesse ponto. Quinta-feira por quinta-feira, um cafezinho com bombom por vez… quiçá fui de fato chegando mais perto da lua que tangencia sua pupila — e parece que entrei logo em órbita do espaço de mim mesmo. Aonde isso vai dar eu não sei, mas se for preciso eu vou lá, ansioso para ver o que me espera.
O que importa é que o quadro que eles têm lá no cafezinho, solitário na parede amarelo-torrada, está com mais razão que imaginei. “A veces um café es la invitación para que alguien entre a tu vida”, assim mesmo em espanhol. Quem diria.