quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Una invitación para entrar a tu vida (ou ‘o eclipse de olhos verdes’)

Todas as quintas-feiras, depois do almoço e antes de voltar ao escritório, nós vamos ao mesmo café onde o brigadeiro é servido de graça com o espresso, e onde o garçonzinho de gravata borboleta se confunde jocosamente com pronomes de tratamento. Não, é sério: uma parte da nossa diversão é receber o ‘bom dia, senhores’ dele quando entramos, para depois irmos embora com o seu ‘valeu bróder’ meio gaiato.
Enfim, eis que Lotte entra no café de novo. Observando-a se aproximar da mesa, ouço, como nas outras semanas, o desenrolar de todas as palavras que eu direi, assim como todas as respostas que ela me dará. A cena desenreda-se de imediato na minha cabeça — de novo.
Oi, eu vou dizer.

Olá, ela vai dizer com tom doce.
E aí passaremos a conversar, e será bem agradável. Vou elogiar o seu brinco e a blusa lilás. Aí ela dirá algo pequeno, inócuo, alguma sacadinha de me fazer sorrir de lado, algo sobre mim, algo que eu ainda não havia contado a ela. Alguma coisa impossível.

Pois então. Fico aqui sentado, mexendo com a colherinha meu café amargo e observando-a debruçada no balcão e convenientemente inclinada. Café com leite e bombom de morango.
“Café com leite e bombom de morango”, ela diz, como quem quase ordena e comanda a senhorinha no caixa. Dá um passo ao lado para que a fila ande, e folheia uma das revistas sobre a mesinha onde fica o açúcar, os talheres de plástico e os guardanapos.
O mundo, quase como um relógio. Aperta-se o botão, troca-se mais um filtro da máquina de café, e açúcar ou adoçante—

“Açúcar ou adoçante?”
“Nenhum dos dois, obrigado.”
“Ok, querida.”
As coisas acontecem, tudo na sua ordem, com os botões apertados, resultados antecipados e os padrões perceptíveis, de tal modo que, se você não jogar uma pedra nas engrenagens ou forçar a barra, tudo vai funcionar perfeitamente. Não haverá nada que o impeça de dissimular que tem algo profunda e fundamentalmente errado no meio de tudo isso.

Mas é besteira.
É besteira porque Lotte voltou a se sentar. Lotte, com seu café com leite e o bombom comido em mordidas ínfimas.
Charlotte é seu nome inteiro, na verdade. Não conheço ninguém como Charlotte, tampouco outra pessoa com o mesmo nome, para falar a verdade. Deixei-me enlevar tantas vezes pela pequena mancha redonda preta que orbita a íris castanho-esverdeada ao redor de sua pupila, que já não creio mais em outro destino que não o fundo de seus olhos. E também o sorriso desenhado, contraponto às mechas de cabelo castanhas e a pele pálida. Ah, Charlotte, que nem sabe disto, mas como senti sua falta.
Hoje o assunto é palpitante. Ela mexe a bolsa, descuidada com a conversa, perguntando o que acho sobre ‘amor’. Assim mesmo, sei lá, ‘o que você acha sobre amor’. Logo em uma quinta-feira tão atribulada. Minha cabeça continua no arquivo do escritório e na cara amarrada dos clientes céticos, e eu tendo que pensar em algo inteligente para dizer.
Eu não digo nada muito de imediato, então Lotte volta sua atenção para a silenciosa superfície da mesa, já que cansou de procurar algo que evidentemente não está na bolsa. Para dar uma resposta, vejo que meu lado direito cartesiano um tanto boring toma a frente, porque desenho no guardanapo um gráfico com ‘sentimento’ e ‘’tempo’ nos eixos, traçando curvas a que chamo de ‘paixão’ e ‘amor’. Uma coisa sucede a outra naturalmente, não?
“Não, não; ‘ tá entendendo tudo errado. Amor não segue muito uma lógica. E mais importante, amor não é um sentimento.” (E ela não liga se a conversa não nos levará a lugar nenhum, se é clichê ou pretensiosa). “Amor são ações”, ela afirma com tom muito entendido e didático. “E não dá pra amar assim sem fazer nada.”
Ela morde o pedacinho que resta do bombom, e termina o café. Amor são ações, veja só.
“Vai mais um docinho aí, senhores?”, pergunta o garçom, que surge como um Mestre dos Magos de gravata borboleta e munido de bandeja de metal. Lógico —sempre tem mais espaço para um docinho, e é o que dou a entender com minha cara de formiga sorridente.
Já é quase hora de ir embora, ao menos para evitar que o papel colado na parede da sala onde trabalho, indicando os horários de entrada e saída dos funcionários, explicite ao chefinho no final do mês que estendi o almoço além da conta. Confiro o relógio do celular.
Vamo aí, senhores?”, Lotte pergunta.
Sim, vamos. Ela sorri, e essa fração de segundos se arrasta um pouco mais do que todas as outras, como se o tempo ficasse meio devagar de supetão. Eu vou sorrir de volta, ela vai sorrir mais um pouco, a gente vai se levantar pra pagar e aceitar a balinha de canela que nos oferecerão no caixa. Charlotte se despedirá sem dizer nada, só com os seus olhos e o sublime eclipse interno da íris esquerda, e vou dizer ‘até semana que vem’. Ela vai dizer ‘até’, daremos uma pausa em silêncio, e aí iremos embora em direções opostas, cada um com uma música na cabeça.
“Amor não é um sentimento”, e não é nem a conclusão dela que surpreende tanto, e sim como ou quando chegamos nesse ponto. Quinta-feira por quinta-feira, um cafezinho com bombom por vez… quiçá fui de fato chegando mais perto da lua que tangencia sua pupila — e parece que entrei logo em órbita do espaço de mim mesmo. Aonde isso vai dar eu não sei, mas se for preciso eu vou lá, ansioso para ver o que me espera.
O que importa é que o quadro que eles têm lá no cafezinho, solitário na parede amarelo-torrada, está com mais razão que imaginei. “A veces um café es la invitación para que alguien entre a tu vida”, assim mesmo em espanhol. Quem diria.

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