segunda-feira, 5 de março de 2012

O Pacto de Varsóvia (pt. 1): sonhos, Marlboro cinza e Joy Division

A última carta que F. recebeu terminava melancólica: “Tenho lamentado as últimas noites. As pessoas em meus sonhos, cúmplices do esquecimento, são sombras sem rosto”, escreveu-lhe A.

A caligrafia dela começava decidida, mas ia ficando curvada e apressada conforme passavam as linhas, quase como se A. tivesse ficado ofegante ao escrevê-las. O papel estava manchado de chá preto mais embaixo, e havia ainda um borrão em forma de gota d’água bem sobre a penúltima palavra.

Cada vez que uma carta dessas chegava, F. sentia-se tentado a responder trazendo à tona (de novo) as poucas vezes que estivera com sua autora. Virou o envelope e leu contente o nome “Anna Walkowicz”. Essa era a ocasional remetente de longas cartas e lacônicos cartões de natal à casa da família Biedermeier. Um episódio recorrente (inclusive em sonhos) foi quando se viram pela primeira vez: A. conheceu F. no dia em que ele se perdeu em Berlin, mesmo munido de um largo mapa da cidade, às três da manhã de um dia no começo de julho de dois anos atrás. F. contemplava lentamente as placas da estação de Warschauer Straße e decidia com calma qual seria o próximo trem a pegar. Logo ali, um lance de escadas acima da plataforma, surgiu ao seu lado duas polonesas: Anna e sua inseparável companhia, Julia Kozerska.

“Se não estiver pensando em ir dormir — e eu espero sinceramente que não —, acho que você iria curtir o lugar para onde estamos indo. Por que não vem também?”, disse J. a F., convencendo-o sorridente de juntar-se a elas. Foi um ato sem muito esforço; apesar do longo dia seguindo o rastro do muro de Berlin a pé sob o sol (algo que rendera a F. um substancial cansaço), J. tinha seguramente um dos dois sorrisos mais cativantes do Leste Europeu. Os grandes dentes brancos faziam tão belo par com os pálidos olhos azuis de seu rosto eslavo, que F. suspeitou que lhe venderia a alma, se assim tivesse sido requisitado. A. o fitava de lado, divertindo-se com a situação. Ele então dobrou o mapa, ao que os três puseram-se a andar em direção a Cassiopeia, promessa da noite.

No percurso entre um lugar e outro, enquanto A. observava o chão ouvindo atentamente, J. guiou a conversa com incisivo interrogatório sobre sua mais nova companhia. Quando F. relatou o que fazia da vida — a faculdade, Blumenau e todas aquelas vagas pretensões de futuro — , J. riu debochando-o de leve, tão cética sobre a resposta ensaiada de F. que ele se viu sem munição alguma.

“Veja,” — começou ela didaticamente — “você tem que ter absoluta certeza daquilo que quer. Cada segundo de hesitação é um pedaço seu negando aquilo que lhe é oferecido.” Breve pausa. J. continuou: “Já contei que sou jornalista, certo? Apesar de ter nascido na Varsóvia (não exatamente na capital, na verdade, mas você certamente não conhece o lugar), tive a oportunidade de morar em Londres e Nova Iorque também—”, F. pensou rapidamente sobre como reagiriam mal a essa última frase lá na terrinha. Voltou-se a ela novamente. “E aí que morei com um cara que era artista, até. Ele tinha um ateliê e tudo, você tinha que ter visto. Conheci pessoas pulsavam uma verve impressionante, e as pessoas lá tinham umas visões sobre as coisas que nunca teria conhecido no interior de minha voivodia. Mas aí é que está: tudo aquilo ainda era metade do lugar em que estamos. Aqui nada para, percebe?” Ela então apontou para uma construção estranha de um andar, toda feita em concreto. Vinha de lá uma música incrivelmente alta. “Em Londres," — F. não sabia dizer a veracidade do que J. lhe dizia, então apenas sorriu e levantou as sobrancelhas — "quando era umas 3h da manhã todos começavam a ir embora. A vida à noite lá é tão intensa quanto breve. E esses caras daqui vão até amanhã, sei lá que horas. Isso que hoje é terça-feira.”

J. estava muito empolgada. Continuou a exaltar Berlin, e falou tudo aquilo que se tem a dizer sobre o pós-guerra, a guerra fria, as duas repúblicas alemãs, a breve infância ainda em um Estado comunista, e seu sotaque quase inexistente era inesperadamente agradável. Apesar de começar a ficar aborrecido (estava com um pouco de sono), F. estava feliz em ouvi-la, especialmente quando J. dava risadas. Perguntava-se sobre A., que estava tão quieta.

Tão logo chegaram na Cassiopeia e J. sumiu no aglomero. Os outros dois se viram sozinhos e F. pôde enfim ouvi-la. Enquanto abriam suas Beck's, A. disse que era também da Varsóvia, não mais velha que F., e estava com calor. Mexeu seus cabelos castanhos, ajeitou a tiara, e tirou o cardigã preto, deixando notar a camiseta do Joy Division que estava vestindo. “Closer quase me levou ao suicídio uma vez, mas é meu álbum preferido.” Foi o suficiente para a empatia, que logo levaria a vários minutos de conversa acerca do filme que fizeram sobre a vida do Ian Curtis, e então aos olhos de A. (mais escuros até que os cabelos), culminando enfim na descoberta do gosto de cigarro que ela tinha. F. ainda não fumava, mas A. tragou um Marlboro durante o caminho todo. Ele ainda lembraria saudoso do peculiar cheiro e gosto que ficou tão distante.

Joy Division era, aliás, uma referência intensa da última carta, agora voltando ao papel que F. tem em mãos. A. mencionava desesperançosa “Isolation”, falando sobre como seus pais vinham brigando violentamente ultimamente em função da doença mental que sua mãe havia desenvolvido, cujos sintomas ela demonstrava em parte há algum tempo. F. ficava sem reação; levava semanas para enfim escrever a resposta quando se deparava com mais que o idealismo de sempre.

E além disso tudo, A. contava que em seus sonhos recentes não conseguia mais alcançar F. de forma alguma. “Em um dos mais recentes eu fui buscar você no aeroporto, mas você ficou doente ou alguma coisa assim e eu não conseguia ver seu rosto por nada. Era desolador, mas penso até que minha cabeça está tentando me dizer que simplesmente não lembro mais de como você se parece.” F. parou para fazer um rápido esforço mental e verificar se lembrava de como A. se parecia, fora as fotos. De fato, não havia nenhuma lembrança que não fosse estática; até se recordava, por exemplo, da vez em que A. maldizia o tempo e tentava acender o seu cigarro na chuva sem sucesso (chovia fortemente em Berlin naquele dia). No entanto, só lhe vinha o cenário, enquanto o rosto dela permanecia abstrato.

Entendeu, então, a carta que viera da Polônia dessa vez. Ah, os sonhos, fontes de idealismo inesgotável e de confortáveis visitas a lugares inquietantemente familiares — agora eram lares de sombras que nunca tinham nada a dizer. Junto com suas faces, se foram também suas vozes, e elas passavam a sentar diante de F. cabisbaixas. Os sonhos incitavam-no a levantar-se da cama e ir rever algumas memórias para amanhecer brilhante. O incompreensível e o inquietante vinham dessas cartas, que contavam sobre cortar a própria pele na agonia e no desespero, revelando sua faceta onírica com cara de pesadelo. E se não podia dizê-lo inconsciente, era porque se aproximava o momento de efetivar velhos pactos de reencontro. F. terminou de ler a carta e se ajeitou inquieto na cadeira, arquitetando a próxima carta, a próxima ida e o próximo sonho. Foi dormir pensativo, sem escrever mais nada.

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Outros sonhos inquietos por aí:

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