domingo, 20 de maio de 2012

Os suspiros de Dona Célia (ou: Bob Dylan, chuva e insônia)

É de se perguntar se algum dia Bob Dylan realmente recebeu de Suze Rotolo pelo correio aquelas botas de couro italiano, junto com o ouro das montanhas de Madrid ou da costa de Barcelona. Nunca saberei ao certo, mas gosto de imaginar que ele combateu a insônia até desfalecer em 1964, e que no dia 25 de fevereiro de 2011, um grande poeta em algum lugar revirou-se na cama sem adormecer.



Em uma realidade muito distante de tudo isso — um ano, dois meses e cinco dias depois — conheço Dona Célia esperando o ônibus vir em uma rua longe do centro de Blumenau. Estou com vontade de ouvir o “The Times Are A-Changin’” que tenho no celular, mas esqueci os fones de ouvido. Aí estava a oportunidade de jogar conversa fora.

Quando sento-me no banco, Dona Célia (que definitivamente tinha cara de ‘Dona Célia’, mas é um nome hipotético, porque ela nunca se apresentou) não diz nada. Mas eu também espero pelo 31 e estou impaciente. Tenho dormido pouco, por insônia e noites em claro olhando para o teto, e também porque andei me aventurando ébrio pela sexta-feira à noite, então estou ansioso para chegar logo em casa. Por isso preciso saber:
“Será que demora o 31?”, digo, tentando não ser rude.
“Olha, meu filho”, seu sorriso é tão amarelado e torto quanto acolhedor, “deve vir logo, porque estou aqui há um tempo e ele ainda não apareceu.”
O perfume dela me lembra o da minha avó.
“Ah, ok. E que horas são?”
Era 11:34 da manhã, ela me informa. Antes de chegar no próximo minuto, no entanto, ela volta-se ao estojo bastante grande que carrego comigo.
 “É um violão? Não gosto muito de violão, mas—“
“Não, é um violoncelo”, retribuo com meu sorriso de café, e ela continua ainda na mesma frase:
“—ah, violão não gosto muito, mas esse violoncelo tem som bonito. Tem sim, é. O violoncelo”, e gesticula pinçando as cordas do seu instrumento imaginário.
“Violoncelo se toca com o arco, não é? Quero dizer,” e aí toco um arco imaginário no instrumento guardado, subentendendo provavelmente que o gesto dela não estava errado, mas não estava totalmente certo também. Mas disse por dizer, também porque tinha sono, e completo: “…né?”
“Ah, sim. Arco, é. Pois é, música clássica é bem bonita. Você gosta de música clássica? É bonito, não é?”, ela fala sem deixar muita oportunidade de dizer algo entre suas frases. “Sempre deixei meus netos ouvindo música clássica, ouvindo o… como é mesmo o nome? É bem bonito sim, com os violinos— ah, não me lembro do nome do cara. Mas gosto muito! Sabe, eu vi uma entrevista no Jô esses dias (você assiste o Jô?); tinha um maestro que ficou sem movimento das mãos, assim, ó. Conhece?”
 Não conheço, infelizmente. A conversa é interessante, e ela continua:
“Ah, mas você tinha que ter visto. Ele tinha um, como se diz?” Ela então gesticula apontando para o antebraço, e para o cérebro, abrindo e fechando as mãos, “e aí tiveram que fazer uma cirurgia, porque ele não conseguia tocar piano (ele tocava piano), e aí mostrou ele fazendo a cirurgia, e aí mesmo na cirurgia ele já estava começando a mexer os dedos!”
Ela está abrindo e fechando a mão, com o punho voltado para baixo. A pausa é enfática:
“Mas aí ele apareceu no Jô e tocou a música. Tocou o piano dele lá. E…é, foi muito bonito. Muito bonito!, até me emocionei”.
Não podia ver seus olhos, porque os óculos escuros grandes com as lentes em degradê ocultavam a maior parte de seu rosto. Sei, ainda assim, que ela suspirou bastante desconsolada, ajeitou o cabelo parcialmente tingido de castanho claro, e voltou-se para mim:
“Bem triste. Mas meus netos gostam. Né, porque eles gostam daquelas músicas deles.” Às vezes faltavam-lhe palavras. Mas ela prosseguia: “Você sabe, aquelas músicas deles. Mas gostam de música clássica, é.”

NIsso veio nosso 31, e acabei sentando-me distante dela, mas trocamos sorrisos quando nos cruzamos no corredor. Demoro para me ajeitar, e noto que o assunto morreu no ponto. Até a hora em  que ela grita para alguém mais à frente para que apertem o botão, porque ela tem que descer, e então vira-se para meu lado:
“João Carlos Martins!”
“Como?”
“João Carlos Martis”, ela exclama mais pausadamente, “é o nome do maestro. O pianista!”

E desceu no seu ponto.

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 João Carlos Martins, como fui olhar no Google mais tarde, é realmente um músico que teve um nervo rompido. Era pianista, e depois, por força das circunstâncias, tornou-se maestro. Sinto um repentino pico de empatia: como deve ser perder o movimento de uma mão? Qual é a dor de romper um nervo? Teria João Carlos Gandra da Silva Martins (é seu nome completo) contemplado a insônia sentado em sua cama, completamente perdido em uma repentina mudança de perspectiva?

Mas há mais por vir que angústia. Diz aqui em uma de suas breves biografias pela internet que o maestro é um grande exemplo de superação. Conta-se que uma noite reviu em sonho um conhecido regente chamando-lhe para tocar o piano, e ao acordar (posso imaginar claramente), viu-se novamente na tormenta de uma perspectiva nova. Sentiu-se no ímpeto de sentar-se ao seu instrumento tão querido, mesmo com as mãos deformadas, porque há mais por aí do que dissera a si mesmo em sua insônia violenta. To die, to sleep no more. Ou, melhor dizendo: to live, to sleep no more.

Entretanto, enquanto ainda estava no caminho para casa no ônibus que chacoalhava e jogava o cello de um lado para o outro, essa história do maestro ainda era desconhecida. O meu entretenimento resumia-se a imaginar de onde viria o suspiro profundo de Dona Célia. Ainda assim, era difícil de supor qual mal eventualmente teria lhe paralisado a mão, ainda que metaforicamente, até porque não sabia nem que cor tinham seus olhos. Ela somente me dava alguma pista por fazer-me lembrar de minha avó, e perguntei-me se ela também enfrentava o desalento da morte que se aproxima, cada vez menos sutil.

À medida que avançamos pelos bairros, a paisagem ficou cada vez menos bucólica (chegamos a passar até por um pasto), e fico feliz de ver as casinhas de colonos alemães. Fico feliz de poder andar sem medo com meu violoncelo por aí, e não sei dizer o que há para tirar o sono de quem está ao redor. Blumenau, apesar do que disse outro dia meu vizinho desinformado, é uma ótima cidade. E pairou a pergunta: em tempos de austeridade distante e comissões da verdade, qual é o motivo de insônia de meus conterrâneos? Em momentos de temor pelo futuro que parece prestes a ruir na metrópole, o que se passa por aqui? The times are really a-changing? Ou sou só eu que tenho tomado café demais?

Virei-me para os outros que também sentavam no 31. Havia, para começar, uma moça de tez negra muito bonita que balançava a cabeça com a música que ouvia no celular. Alguém sabe o que lhe tira o sono? E o homem sério atrás do óculos e bigode, que ensaiava uma conversa movendo os lábios sem pronunciar nada? E agora, José? Os personagens são muitos: havia na rua uma adolescente muito bonita, que ajeitava o cabelo insistentemente e esperava por alguma coisa. Havia também aquele sujeito baixinho com uniforme de futebol de salão que sempre está fazendo embaixadinhas no semáforo, e me surpreendi ao ver como alguém conseguia fazer tantos truques com a bola e manter um aspecto melancólico daquele jeito. Vi ainda um motociclista que vestia uma réplica do capacete do Ayrton Senna. Aposto quanto você quiser que a nostalgia dele também é gigante.

Também por ali havia aqueles menos atentos a esses detalhes, como um pessoal com vestes da Cruz Azul recolhendo doações para usuários de drogas. Não pareciam lembrar da sua causa, que em algum lugar alguém definhava com a falta do crack, mas não os culpo. Seus sorrisos são um alívio para os transeuntes e motoristas que iam sei lá aonde num sábado de manhã. Quem sabe a insônia não cause tanta perturbação para essas pessoas, Deus lhes pague.

De qualquer forma, os exemplos continuam, como no dia que vi um rabino junto de um grupo de padres, e um bispo, caminhando risonhos pelo Aeroporto Salgado Filho. A vida, veja só, está cheia de personagens interessantes, e a empatia supera qualquer outro tipo de escapismo.

Carlos Fuentes, autor que faleceu recentemente (“que Deus o tenha”), por outro lado, estava falando ontem em uma entrevista reprisada na TV sobre como Machado de Assis seguiu a tradição de Cervantes. Explico: esses autores, conforme disse o escritor mexicano, exploravam muito o direito de inventarmos nossos próprios universos. O naturalismo de certos autores latino-americanos, segundo ele, é supérfluo, porque não precisamos repetir frases de pessoas de carne e osso para dar verossimilhança aos textos.

Mas discordo em parte, porque retratar esses personagens tristes (ou teorizar sobre suas vidas, como Marta gostava tanto de fazer) é um passatempo fascinante. Até esqueço dos habitantes da minha própria mente: amores e desamores recentes, que ainda aceleram meu coração e me tiram o fôlego; o câncer de mi abuelo; o futuro promissor que às vezes ameaça apagar como um cigarro que vira cinzas; e a minha vontade de correr na contramão, atrapalhando o trânsito.

Enfim, há uma miscelânea de sentimentos e suspiros nos ares, até para um sábado de manhã. E tudo isso fica latente no domingo à tarde, especialmente se o tempo estiver fechado. Sou tomado pela saudade do Bob Dylan por uma de suas ex-namoradas, juntamente com a melancolia velada ou indiferença contente das pessoas que habitam nossas vidas como figurantes de um filme no Canal Brasil.

No entanto, acabo por imaginar a angústia que o pianista de mão engalfinhada uma vez chegou a sentir, e vejo que seu grande legado é maior que a música, porque ele é, afinal, um exemplo de superação e persistência. Com isso, vamos todos rir, porque a insônia só nos dará tristeza no dia seguinte e há mais por aí que podemos imaginar. To live, to sleep no more: estamos no limiar da alvorada.

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Ainda assim, até o canto do sabiá é triste quando chove. É verdade, look it up.

Ou espere até setembro.

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...and by a sleep, to say we end the heart-ache:
http://mundoderascunhos.blogspot.com.br/

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