quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Maço ou carteira (1)


Catarse”, digo em voz alta, tamborilando os dedos na mesa.

O jeito que essa palavra veio a mim foi como uma promessa bem contada, pedindo que eu me sentasse ao seu lado esperando que me jogasse um punhado de referências intensas o suficiente para que eu lacrimejasse. Parece-me que ela resume bem o que se passa em minha mente, como quando estamos tomando café e minha cabeça pende para a esquerda, jogando meu olhar a assuntos muito distantes da colherzinha de açúcar que há em minha bandeja vermelha.

Por exemplo: se fevereiro durasse para sempre, talvez eu pudesse flutuar constantemente em uma existência oportunamente confortável. Sairíamos para tomar saquê todas as noites, anotando pequenos prazeres da vida e rindo das crianças gordinhas que correm ao nosso redor.

Agora, no entanto, conto os dias do calendário esperando viver como berlinense temporário. Na expectativa da abstinência de mim mesmo, uma pequena catarse vai fazendo-se notar: sombras gigantescas cobrem os arredores das convicções acumuladas inocentemente até aqui. Minha respiração está abafada e meus pés, pesados como pedras. Sou demissionário da minha própria rotina. Meu peito abriga ofegante receio de que não consiga expurgar os medos da minha tola alma, tão nova a vagar à noite enquanto meu corpo dorme arrependido de deixar de lado pedaços do meu coração atrelados ao chão de Blumenau.

Se eu fosse um personagem, minha única direção na história seria ficar ao invés de partir. Tivesse eu nenhuma outra opção, insistiria em ficar como possível: ao invés de voltar, minhas cartas saudosas jamais cessariam de serem enviadas. Sempre teria como norte do meu mapa aquele dia em abril de 2012, em que chovia após uma tarde quente e ébria, na qual pude encontrar de súbito a única pessoa que me mostraria sem dificuldade a maior paixão que vou experimentar enquanto respirar.

Lembro-me de contar uma mentira para que Malu voltasse até o lugar onde estávamos, só para tê-la em minhas mãos mesmo que por um segundo — fosse esse o meu último segundo como aquele, ou o primeiro de incontáveis outros. Curiosamente, antes que me desse a chance de entender o que tinha feito, ela apenas olhou me bem no fundo dos meus olhos e pediu para eu ficar ao invés de logo ir embora. Exatamente como me foi pedido naquele dia em que eu estava ensopado de chuva, ficarei. Mas partirei, assim como imediatamente saí dali, cambaleando pra casa entre a culpa abismal e o estado de viva satisfação que é uma paixão pulsante recém-nascida.

Se eu fosse um personagem, meu único propósito na história seria reviver constantemente aquele dia em que selei uma promessa com um beijo. A catarse, para criar a tensão na história que a fará interessante de se ler, talvez seja partir ao invés de ficar. Não há boa história se não houver um personagem obcecado em satisfazer seu flamejante propósito interno, desde que possa contrastar a razão pela qual vive com um conflito aparentemente invencível.

Enfim ficarei, sem dúvida. Mas preciso primeiro ir embora, como se nunca mais fosse voltar. Catarse: encarnarei um personagem, e correrei exatamente na direção oposta do que acho que meu roteiro diz.

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(Faça-me importar, João. Dê-me um bom motivo para te ouvir.)

“Catarse”, digo novamente em voz alta, tamborilando os dedos na mesa.

Tudo isso começou em janeiro de 2012, semanas antes daquele dia em que choveu muito em abril. Até então não era hábito meu colher palavras aleatórias, mas lembro-me de conhecer Malu e logo propô-la que escrevêssemos textos livres com base em um tema novo — uma palavra diferente — por semana. Já tínhamos o hábito, e algo também me dizia que não me arrependeria de incitar e compilar suas narrativas em versos ou em prosa curta.

Naquela ocasião, estávamos entre meus amigos e ela não conhecia praticamente ninguém. Diverti-me vendo seu sorriso ameno e seus olhos inquietos buscando alguma fisgada de assunto ou deixa oportuna de se entrosar. Fui até ela na varanda, onde soprava uma brisa morna: queria fazer parte da sua vida, e sentia-me principalmente tentado a fazer dela meu personagem.

De acordo com minha sugestão, começaríamos por ‘madrugada’. Contar histórias é a forma mais simples e direta de expressão que conheço, então qualquer mínimo de itens aleatórios do nosso vocabulário era suficiente para inspirar nossa cabeças férteis. Prendíamo-nos em um emaranhado de referências particulares e linhas de raciocínio amargas para outros leitores.

O primeiro tema rendeu versos contemplativos. Minha mente deu casa a corvos, fantasmas suicidas, temas espinhosos e métrica poética. Casei as horas que passam depois da meia-noite com saudades infinitas em um poema maluco e substancial. Depois de relê-lo um tanto de vezes, dei-lhe o direito de ficar escrito a caneta em minha porta branca, ao lado de um trecho de “On the Road”. Agora tinha um constante motivo para sentar-se no chão diante da porta e reler o poeminha, inspirando o ar ao meu redor na esperança de achar o perfume de Malu no ar, junto com a voz doce e as passadas felizes.

Até hoje o perfume não surgiu do nada no ar, evidentemente. Mas cada vez que li o poema imergi em minha memória, voltando-me ao dia das rimas da madrugada e da homenagem velada à vontade de ver Malu ao fim de uma noite, no limiar da alvorada. Essa alternância entre sua ausência e o deleite de reviver dias de chuva — ou de sol na praia, vento no terraço, noites de Nat King Cole e luas cheias à piscina — é meu exercício mental. Tenho, afinal, que acostumar-me com a ideia de partir, contrastando uma paixão a centímetros de distância e a sua ausência a milhares de quilômetros.

Fases de transição ou mudança são feitas de corações rompidos e reencontros que nos redimirão. Catarse: eis o tema que me traz para este momento. Os ponteiros do relógio suíço de pulso esquecido por ela sobre a minha mesa de escrever correm sem tropeços, em um fluido movimento circular dos segundos que passam indiferentes ao meu apego pelo presente. Como uma sombra escondida por trás de cortinas claras, estou à espreita de assustadoras mudanças. O fim de um mundo que não acabou em 2012 é perfeita metáfora: cada dia encerra-se com clara fobia de que as horas sejam confundidas com frivolidades.

Ilustre-se o tema: voltemos ao fim de 2012.

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Mais poesia e madrugada:
http://mundoderascunhos.blogspot.com.br/2013/02/trechos-catarticos-parte-1.html

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