segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Maço ou carteira (3)


Durante a madrugada, entraram em minha casa dois homens vestindo longas túnicas com capuzes. Um deles está todo de branco, e o outro, todo de preto. Eles pararam ao lado de minha cama e ficaram me fitando até que eu acordasse e os encarasse assustadamente, ainda que eu não pudesse ver seus rostos. Tudo o que podia perceber além da aparência superficial eram suas respirações, lentas e profundas. Senti-me na urgência de levantar-me e suplicar indulgência pela minha inteira condição, que pareceu sempre inofensiva a qualquer um, mas eles eram inteiramente indiferentes às minhas reações.

Um deles cheirava fortemente a álcool, e o outro fedia à fumaça. Nessa podridão eles voltaram a se encarar, e após uma hora, saíram pela porta, como quem avisa que essa foi somente uma visita passageira. Definitivamente voltariam, ainda assim, como já voltaram antes. 

Soerguido na cama, passei a mão no rosto e percebi que estava sedado. Senti-me tonto, até. Perambulei pela casa, passeando em pensamentos desconexos. Contar histórias, um de meus passatempos favoritos, é na verdade uma forma superficialmente inteligente de escapismo, na esperança que a verdade injetada em cada um dos persongens ou das frases cuspidas no papel (e na tela do computador) refilta alguma verdade igualmente tangível na realidade. 

Aquele sujeito que encontrei no ônibus em Florianópolis, por exemplo: não sei seu nome, e tampouco sei com o que se parece agora. Evitei encarar seu rosto na ocasião em que nos encontramos para não parecer mal-educado, e agora não saberia achá-lo entre qualquer multidão. Mas fico às vezes olhando fotos da Beira-Mar e me pergunto com que olhos ele passeia por essa avenida tão viva e movimentada.

Se eu lhe desse em minha cabeça um ar satisfeito e garantidamente seguro, ficaria momentaneamente feliz  em perceber que seus próximos passos estarão vigiados por uma sorte sisuda e bem resolvida. "Ah, veja as nuvens que se formam sobre o horizonte quando o sol se põe", ele pensaria. "Adoro ver a cor laranja do fim de tarde conflitar com o azul restante do céu, até que eventualmente fique escuro demais para que se ouça a discussão entre essas cores intangíveis e só se perceba a lua no céu, sobre hoteis demaisadamente confortáveis" (de forma que seus hóspedes não consigam nem se dar conta que há alguma coisa além de roupas bonitas, biquinis cavados, tatuagens elaboradas e garrafas de cerveja belga). 

Prédios tumultuando a avenida que outrora foi sua residência e terra de paz, mar e brisa indiscretamente aveludada, atordoariam sua percepção romântica de um pedaço de terra na capital de nosso estado. Mas ele estaria deitado sobre a grama úmida, que roçaria com as mãos e faria com que agradeceria em silêncio pela possibilidade de render-se ao próprio destino.

Por outro lado, imagino-o também revivendo avidamente paisagens de décadas já há muito passadas nos momentos menos afortunados. Seu coração reviveria a ânsia de conviver com paixões impetuosas, e moças de sotaque ilhéu voltariam como fantasmas, que param ao lado de sua cama à noite e o fitam, indiferenetes às suas reações. Algumas o marcaram tal qual uma brasa ardente em sua pele; paralelamente, há aquela que o marcou no fundo de suas memórias, como se o tivesse queimado no âmago da alma. 

Voltando-se à essa antagionista, meu personagem normalmente acabaria remoendo a ideia de rever o nariz, sorriso e risada de sua inevitável memória. Essa personagem intensamente feminina o hipnotizaria ainda que distante por milhares de quilômetros, e o deixaria inevitavelmente convivendo com uma incansável marca no fundo de sua inteira existência. Cada cutucão na lembrança dessa embriagante moça, que reinventou suas ideias de paixão e propósito, voltaria como uma alfinetada no coração. Suas feridas, visivelmente cicatrizadas, destilariam de qualquer forma gotas volumosas de sangue e manchariam as toalhas de sua casa. As manchas ficariam como marcas, que só sairão com a condição de deixar um contorno inegável no fundo de sua retina.

Sentado em um banco à Beira-Mar, ele deixa o vento do mar confortar esses pensamentos. Deixar os receios roerem pensamentos como ratos são sintomas de uma mente doente. Ele olha para o luar e as estrelas (algumas estão ocultadas por nuvens de chuva, já que é verão), e se pergunta se não poderá eventualmente atingir a cartarse. Pois, se o heroi da história encontra a estabilidade, então o abismo profundo de dores indiscritíveis é temporário, já que ele então ressurgirá sobre platôs infindáveis. Meu personagem pergunta-se ansioso onde estará sua resposta.

"Por onde vaga o elo que ligará a minha corrente de até então com a solução definitiva que me redimirá?", diria. Ele joga preces ao vento, porque tem medo de que seja visitado por homens sérios vestindo capuzes, que cobrarão os motivos de suas sombras internas, mesmo sem dizer nada. A ideia de ter que olhar para esses vultos assustadores — um deles apareceu em certa ocasião acompanhado de uma terceira companhia, de feições assustadoramente similares às suas, mas calvo e com olheiras profundas — incomodava-o produndamente. O cheiro artificial do vulto de capuz branco lhe dá automaticamente um arrepio na coluna.

E ele segue olhando a linha do horizonte, mas a catarse pode não vir.


As histórias, como bem disse um famoso roteirista, devem ter um começo, um meio e um fim — mas não necessariamente nessa ordem. As catarses calculadas pelos autores, assim como a jornada do heroi (que pressupõe passos definidos para cada personagem principal), pode não ser inteira. A fração de um infindável conflito pessoal, afogando nosso protagonista como um pântano que o engole a cada braçada, pode resumir-se a uma história que se conclui no momento em que as bolhas de ar saem de sua boca pela última vez. A história talvez entreveja um resgate, mas nunca saberemos. 

Se os personanges têm espinhas, por exemplo — que os arrastarão impiedosamente em busca de seu chamado interno, vestindo-os inteiramente com propósito —, talvez estejam lá porque não as tenhamos fora da ficção. Indispomos de verdade inerente, que só se apresenta sazonal e efêmera. É como se, em função desse verve constante, conseguíssemos sentir desprendendo da ponta da caneta (e do teclado) faíscas de sentido, graça e claridade. Por isso eventualmente acabamos escrevendo sobre pessoas que não existem.

Talvez, veja bem, se conseguir elaborar uma narrativa (ainda rascunhada, mas não importa) de alguém dito herói, que enfrenta a catarse com pulsos firmes e olhares que não hestiam, não seja necessário que eu me clausure na busca de alguma solução confortante. Se meu personagem transparecer tranquilidade em ver suas paisagens favoritas aterradas, talvez se preocupe menos em deixar sua ideia de essência ser soterrada nos escombros de uma triste despedida.

Lembro-me do dia em que o conheci e já o esqueci: fiquei maravilhado com a forma que estava bem-humorado e disposto a descrever a previsão do tempo, elogiando tão contentemente Santa Catarina e sua diversidade natural. Talvez ele me servisse de inspiração, com tal desprendimento pelos encapuzados que já o atormentaram. 

Enfim, como pessoa real, era descomplicado ilhéu. Como personagem, tornou-se depósito de meus receios sobre minhas próprias catarses. Afinal, nosssos destinos equiparam-se ao desenvolvimento de histórias fictícias? Posso aceitar que cada dia meu transcorrerá em direção à resolução dessa iminente expurgação de infelizes pensamentos, ou estou diante de uma realidade infelizmente fria e pragmática? 

Se a catarse desse meu querido companheiro de viagem não for igualmente realista, terei que me conformar com soluções paliativas. Vou decorar "Para Viver um Grande Amor", de Vinicius de Moraes, e aí quem sabe saberei resolver essas aflições todas. Caso contrário, verei minha esperança desfalecer diante das dificuldades de manter viva os mesmos receios que o personagem tinha: sua antagonista, extraordinária e fascinante em seu apaixonante ar de triunfo, eternizar-se-á como busto idealizado nas memórias (protegidas por vitrais) em sua cabeça. 

Espero somente que a catarse seja tão real quanto nas histórias que ouso redigir, apesar de ser passional diletante. Que cada melancolia e abismo encontre em sua borda oposta um platô similar à Lagoa da Conceição, ornamentado pela água refletindo o céu e a areia das dunas, em seus infinitos grãos esquentados pelo sol.  Nunca mais precisarei encontrar o caixa do posto, a vender seus cigarros, e tampouco a bruma, a ilustrar claramente a melancolia e morte alheia.

Que sejamos aguardados por Esperanza Spalding e seu contrabaixo no outro lado dessa momentânea ausência, que nos fraquejará momentaneamente e desenhará mosaicos com todos os alfinetes espetados produndamente em nossos corações: francos, sinceros e flamejantes em suas paixões.

Caso contrário, que me levem embora os encapuzados temores de uma vida sem minha antagonista de perfume doce. 

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Não sei pensar nas coisas sem exagero.
http://mundoderascunhos.blogspot.com.br/2013/02/trechos-catarticos-parte-2-meu-coracao.html

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